Logo no começo dessa sua grande obra saudosista, Jonas Mekas recita um trecho da Odisseia de Homero, o canto da saudade de Ulisses, o ser forçado a ir ao mundo quando nunca nem quis sair de casa. Este paralelo com o canto do personagem homérico é uma constante repetição na obra de Mekas, composta a partir de registros dos seus primeiros anos em Nova York, recém-chegado em um exílio da Lituânia. Muito mais do que um filme de memória ou um found footage, a poética encontra-se na construção do novo: o novo local, a nova cidade, a nova vida de refugiado, mas sempre retornando à saudade, à memória, ao ato forçado de partir do lugar que veio e de onde nunca quis sair.
Dividido em várias bobinas — seis no total —, a vida e o cotidiano são mostrados sempre com uma nostalgia recorrente; seu ato de andar por ruas, até então desconhecidas por Mekas, é nomeado sempre como dor. Uma dor de um lugar novo, uma dor da solidão. O realizador é um eterno estrangeiro no lugar que habita. Na sua obra-vida, esse lugar novo continua sem memórias, sendo construído lentamente. Ao mesmo tempo que tenta criar essas novas memórias nesse novo mundo, país e vivência, ele documenta tudo, desde suas longas caminhadas sozinho no parque até o acolhimento entre os lituanos em Nova York. As estações passam, as imagens são de pessoas e de lugares; mas, dentre essas imagens tão concretas de um cotidiano, o abstrato do seu sentimentalismo e da saudade se torna protagonista no seu exílio em Nova York.
Entre seu exercício de registrar o seu saudosismo, no campo mais pessoal de sua existência como poeta e cineasta, emerge também o Mekas político, que, como ele mesmo fala: “eu queria ser o olho que documenta, eu queria ser o cinegrafista historiador do exílio.” O canto de Ulisses ressoa novamente aqui, um canto desesperado, o qual não sabe mais se canta ou se chora. Mais do que um relato individual, esse filme é um ato de resistência do poeta-cineasta. Seu ato de filmar, de documentar, é uma resistência a si como lituano refugiado, um tema recorrente em sua obra — tão vital quanto seu cinema e sua poesia é a sua vida como homem em exílio.
Ao chegar ao final desse diário, é cada vez mais intenso o questionamento de Mekas acerca da sua posição e da sua condição como refugiado, onde está sempre perdido entre o presente e o passado. E justamente por esse questionamento ele assumiu para si a natureza de registrar tudo. Talvez esses primeiros registros dele em Nova York estejam intrinsecamente ligados ao poeta-cineasta que ele foi — o registro dos protestos, a reflexão sobre o porquê de registrar. Como ele mesmo fala, não quer mais olhar em frente, o ato de registrar foi o caminho que escolheu. É de sua natureza, e esses fragmentos e registros fazem dessa obra tão única e tão sensível.
No fim, muito mais do que ver esse processo de adaptação e vivência dessas novas memórias, vemos a vida na poesia de Mekas. Embora ele, não enxergue essa cidade como seu lugar, ele começa a construir suas memórias ali. Essa construção final de sua imagem, muito mais que visual, a própria palavra que registra e reconhece, dá o nome que lembra dessa memória, que vivenciou ela. E como a próprio registro final na praia dessa Odisseia de Mekas nessa nova terra, ele percebe que sim, ele já andou por essa praia e todos os elementos que ali estão não são apenas registros do momento, mas também a percepção que ele construiu ali outras memórias e consegue então nomear essa terra, até então tão estrangeira e tão cheia de saudade, como algo o qual ele pertence, e consegue enxergar para além da saudade, embora essa palavra sempre habitará junto ao seu canto e a sua imagem.
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