"Percorri outros caminhos."
Narrarte é o nome do curta-metragem documental sobre a escritora Lygia Fagundes Telles (1918-2022), realizado por seu filho Goffredo Telles Neto (1952-2006) em 1990. O título é um neologismo envolvendo as palavras narrar e arte, verbo e substantivo, respectivamente. Narrarte poderia enquadrar-se como verbo: o ato de narrar em arte; assim, tal vocábulo poderia também ser um sucinto resumo de Vermelho Bruto (2022), longa-metragem de Amanda Devulsky. No curta, Telles-filho filma Telles-mãe, permitindo que, enquanto assume papéis de atriz e musa, seja ela a autora da própria história, tal qual das suas inúmeras obras lançadas; já em Devulsky, a autonomia é dada para que as atrizes se filmem, narrem, moldem suas próprias histórias sem que necessariamente assumam a fronte das câmeras. Essa liberdade permite que a obra não [apenas] explore, como seja explorada de forma não-convencional à contação das histórias. É nessa aventura da linguagem que está toda a mágica do negócio.
Manchas, fungos, chiados, mofo, estático. É a câmera trêmula, é a falta de foco, é o som que vez ou outra estoura. E é acima de tudo a liberdade dada às protagonistas que faz de Vermelho Bruto uma obra tão única. É a quebra do cinema no “comum” de mergulhar em seus trabalhos, como analisar detalhadamente pincelada por pincelada em um quadro. Em Branca de Neve, do português João César Monteiro, ao público é oferecida uma tela preta e todo o desenrolar da história dá-se na narração. Se em Monteiro nos é retirada a imagem, em Devulsky são os rostos, identidade principal de contações. O longa navega pelos arredores, explora as bordas. Não são bordas de madeira, mas sim molduras: antigas, novas, cautelosamente talhadas, variadas. Mesmo que díspares - as molduras sendo tanto histórias quanto imagens - todas conseguem intercalar-se sem problemas. Como quando Jô diz que não estava sumida, apenas percorrendo outros caminhos, frase que sumariza toda a ideia do que é o filme.
Optar por excluir - ou melhor dizendo, não incluir - é também um tiro certeiro ao manter os holofotes em quem narra. A exclusividade neste protagonismo vai além de dar câmeras e permitir a exploração de seu acervo pessoal. No pós-resultado das eleições de 2018, Alessa, mãe de Raquel de 9 anos, tenta mesmo com a voz embargada acalmar a filha que chora descompassadamente com a vitória do outro candidato. A cena consegue equilibrar de modo perfeito a sensibilidade em todo o seu desenrolar, sem que se mostrem imagens do homem em questão ou filme num dramático close as lágrimas desesperadas da criança. A potência também se faz presente: neste consolo, Alessa também segura o fio da crença que nada está perdido. Sozinha, a cena já seria uma plena simbologia do “ser” mulher, mas no universo de Vermelho Bruto, é o ponto mais forte, tal qual as ondas mais altas dentre um oceano de exemplos.
Há no ato de revirar memórias a audácia maior que ultrapassa a questão simplória da privacidade. Estar atento aos símbolos e suas repetições é o puro suco deste país tropical; o resultado das eleições presidenciais é apenas uma das provas do longo passado que o Brasil tem pela frente. Mesmo que incerto, o futuro não soa tão assustador quanto deveria, e estar em atenção, em cuidado com seus sucessores é primordial. A mensagem é clara: nenhuma arma tão potente quanto a memória, nenhuma força maior que a sua própria. E que bom. Ainda que os rostos se façam ausentes, nas “entrelinhas” se encontra o que se precisa saber. Tem muito da história em cada pedaço de memória, o coletivo nesses momentos de individualidade, e assistir por outros pontos de vista é como decifrar sinais depois de viver um século. E esses são menos capciosos do que parecem.
Este texto faz parte da cobertura do XIV Janela Internacional de Cinema do Recife.
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