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Foto do escritorGabriel Lucas

Janela de Cinema 2024 | Corpos que queimam: a sinfonia pulsante em “Baby”


Foto: Divulgação / Vitrine Filmes



“– Você fugiu de casa?

– Não, eles é quem fugiram de mim.”


O corpo, no cinema, é expressivo por excelência. Frequentemente, não nos damos conta de que o sujeito, ao se movimentar pelo plano cinematográfico, é simultaneamente influenciado pelas demandas e limitações impostas ao e por seu próprio corpo. Desejos, dores, ódio e as mais variadas sensações humanas fluem e se manifestam através dele. É por meio desse corpo que acessamos uma lógica singular de percepção dos sujeitos, de sua realidade, de seu comportamento e dos motivos que os levam a agir de determinadas formas. Filmar com o corpo, por isso, é uma tarefa complexa. Esse método exige a assimilação de vozes e discursos – a saber, os dizeres – que coexistem com aquilo que permanece não dito, que não é verbalizado, mas que, de algum modo, se compreende, se capta, se vivencia. Ao assumir a direção de Baby (2024), Marcelo Caetano assume o desafio de explorar o corpo, as vozes que ecoam através dele e as reverberações desse processo para narrar uma história singular mas que, ao mesmo tempo, busca aproximar-se do espectador de formas múltiplas e sensíveis.


Em Baby, acompanhamos a trajetória de Wellington (João Pedro Mariano), um jovem de dezoito anos que, após deixar um centro de detenção juvenil, tenta retornar à casa dos pais. Frustrado em sua busca, Wellington vaga pelas ruas de São Paulo à procura de sinais e ajuda para encontrá-los, mas sem sucesso. Em uma praça, ele reencontra antigos amigos, que o convidam para um cinema pornô onde planejam distrair os espectadores para furtar seus celulares. Deixado para trás no cinema, Wellington conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro), que lhe oferece abrigo e oportunidades de trabalho como garoto de programa e vendedor de drogas nas ruas. Embora aparentemente casual, a relação entre os dois revela-se profundamente significativa.


Há uma cena inicial, por exemplo, na qual, ao chegarem à casa de Ronaldo, ambos se despem, prestes a iniciar uma relação sexual. Nesse momento, Ronaldo observa atentamente o corpo de Wellington e nota que este é revestido por cicatrizes. O homem não apenas demonstra curiosidade, como também escuta com atenção o relato de Wellington sobre a origem dessas marcas, descobrindo o passado doloroso que ele carrega. Em um gesto de acolhimento, Ronaldo o abraça, permitindo que descanse em seus braços. Essas cicatrizes, no entanto, revelam mais do que simples eventos isolados; são marcas de um processo complexo de aceitação da própria sexualidade, moldado pelas violências física e psicológica enfrentadas na família e na escola.



Foto: Divulgação / Vitrine Filmes


A dificuldade em aceitar a sua própria sexualidade, acessada através do artifício da memória, reside não apenas no preconceito e na violência quase inerentes ao conhecimento de ser um jovem gay, que, a saber, são constantes. Mais do que isso, trata-se de aceitar, de forma tão difícil, o ato de abandonar uma outra realidade, a rigor, uma contrarrealidade, supostamente mais feliz e certamente sedutora. À medida que Wellington revisita seu passado, ele demonstra que alcançar felicidade e prazer plenos exige a coragem de entender o que realmente movimenta seu corpo, suas latências e seus desejos mais profundos.


Em consonância com as memórias de um passado doloroso, o filme também explora outras tendências que não se distanciam do corpo. A imagem revela a propensão do grande centro urbano a se desdobrar em diversas formas de interação com o outro, sobretudo por meio do sexo. As relações sexuais de Wellington, ora casuais, ora voltadas para a obtenção de dinheiro através de programas, expõem o corpo em constante movimento, exalando, de forma descompassada, desejo, paixão e tesão. Submersos no fluxo do desejo, esses corpos se sobrepõem à imagem, que revela as nuances da maneira como o corpo encontra, na tensão – ora física e sexual, ora subjetiva e discursiva – com o outro, uma forma única de expressão. Esses corpos, por sua vez, expressam-se a partir de suas subjetividades, histórias e realidades, deixando-as transbordar, mesmo que sutilmente, na maneira como se movimentam entre os incontáveis corpos e ruas da cidade de São Paulo.


O deslocamento pela metrópole também assimila uma outra estratégia que é cara à imagem em movimento. O protagonista, em constante trânsito, encontra margem para a própria liberdade de expressão de seu próprio corpo no outro: nos seus amigos, com os quais divide as noites e as rimas nos ônibus; em Ronaldo, quem o oferece abrigo; em Alexandre, o sugar daddy que o entrega presentes e uma possibilidade de futuro de riqueza etc. Mesmo que nem sempre o resultado dessas relações seja positivo, Wellington descobre em sua busca por pertencimento, nos lugares menos convencionais, o encontro de novas famílias e novos lugares para chamar de seus. Por isso, é válido ressaltar como o sexo não é utilizado como um dispositivo meramente estético e ilustrativo, tampouco este é vazio. Na verdade, ele é apenas um dos fundamentos que principia a relação com o outro, nesse encontro com corpos outros que se desdobra na descoberta de que, no meio de realidades tão diversas, distantes e enrijecidas, ainda subsiste o gesto de amar – não apenas romanticamente.


Cabe mencionar, novamente, o esforço necessário para garantir, no filme, a reafirmação desses efeitos estéticos. Enquanto o som estimula uma ressonância das sensações e do desejo – através da breve orquestra que inicia o filme, dos batuques e das canções que estimulam a vida diurna e noturna na cidade de São Paulo –, a imagem absorve a consciência do gesto criativo. A rigor, a câmera, no filme, demonstra clara consciência do processo gradual de construção da liberdade, que transborda numa fotografia encantadora. Visualmente atrativas, as cores também pulsam na metrópole e carregam em si a potência de despertar sensações singulares: o tesão e o desejo no cinema pornô, nas saunas e nos quartos dos clientes; a excitação que palpita nas baladas noturnas; a aguda felicidade sentida com os amigos ao caminhar pelas ruas durante a noite.


Baby é, pois, uma clara tentativa de dar fisionomia a uma sinfonia que pulsa, ou seja, que assimila, de formas tão singulares e tão diversas, os estímulos que provocamos no outro e que, dialeticamente, nos são provocados por esses outros. A busca por pertencimento e por chamar algo de “seu” só é alcançada a partir de uma jornada intensa pelo ato quase que constante entre limitar-se e do ser liberto – nunca concretas, mas que sempre o conduzem em seu próprio movimento. Os corpos com os quais nos deslumbramos e sentimos desejo - e, em momentos, repulsa - na tela do cinema queimam pois permitem-se descobrir, e continuar descobrindo, que a intensidade do sentir não reside unicamente na pungência da dor, mas também no prazer e no gozo, no contentamento e na paixão.



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