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“Às vezes, o cinema revela o mundo, o real, pelos olhos de uma criança”
– Jorge Larrosa [1]
Ao assistir a um filme, frequentemente associamos o cinema a uma forma de confronto com a realidade, ora caminhando com ela, ora assumindo uma posição oposta. Contudo, não é difícil perceber que o cinema principia, em nós – espectadores – algo profundo: uma sensação, uma emoção, um pensamento, uma memória. Assim, é preciso reconhecer que, tal como ocorre uma travessia entre o espectador e o filme, existe também uma complexa e diversa relação entre cinema e realidade. De fato, embora o documentário – gênero consagrado na arte de retratar os fluxos e reverberações do real na sociedade – seja amplamente reconhecido por esboçar um retrato da realidade, a ficção, de forma curiosa, também ocupa esse espaço. Ao explorar as fronteiras entre o real e o inventado, a ficção abre um caminho para refletir o mundo que nos cerca e as questões que emergem dele.
Manas (2024, dir. Mariana Brennand) é um exemplo notável de filme que recorre a esse efeito. Ao explorar as nuances da dura realidade vivida por mulheres e crianças na Ilha do Marajó, no estado do Pará, Brennand se apropria das margens da ficção para contar uma história sensível e que evidencia as marcas deixadas nessas meninas – inscritas em seus corpos, em seus gestos e em sua própria forma de existir no mundo. De fato, não se trata de uma tarefa simples: o gesto narrativo de inventar exige uma profunda sensibilidade, especialmente quando se tratam de histórias tão reais e marcadas pela violência. Por esse motivo, busquemos compreender como o filme reconstitui, a partir do confronto entre ficção e realidade, o tecido de uma infância violentada, que se reflete em muitas outras formas de violência.
No longa, acompanhamos a trajetória de Marcielle (Jamilli Correa), uma jovem de treze anos que mora na Ilha de Marajó com o pai, a mãe e dois irmãos. Sua rotina é dura, embora simples: ajuda a mãe a lavar as roupas no rio, colhe açaí com o irmão na floresta, brinca – e por vezes briga – com a irmã mais nova. O seu retrato, no entanto, é tocado por meio de um ponto de inflexão bem específico: ao vivenciar sua primeira menstruação, a jovem percebe as transformações em seu corpo, ainda que não tenha plena compreensão das implicações que essas mudanças trarão para sua vida.
Entendemos, posteriormente, a real motivação enredada nessa história. Há uma cena na qual a família da garota está se preparando para dormir. O quarto, pequeno e pobre, possui uma cama e várias redes estiradas entre as paredes. Aquela na qual a menina costuma dormir se rompe, e o pai a influencia a dormir com ele. Nas semanas que se seguem, este começa a interagir mais com a filha: leva-a para trabalhar, caçar, tomar banho de rio etc. Com o tempo, percebemos que a interação não era meramente ocasional, mas fazia parte da intenção do pai em abusar sexualmente da filha – situação essa semelhante ao que ocorreu com outra irmã de Marcielle, que deixou a Ilha e nunca mais retornou.
Os sucessivos abusos, na casa e nas balsas, desvelam uma realidade dolorosa, e a forma como o longa é filmado e montado demonstra uma atitude sensível e singular de criação. O educador e pedagogo Jorge Larrosa uma vez mencionou, ao investigar a passagem das crianças e da infância pelo cinema, que esta pode ser enxergada como um recurso para “se aproximar de um olhar infantil [...] reproduzir, ou inventar, um olhar de criança” (p. 118). Com efeito, encontramos em Manas uma câmera sensível e que representa, antes de tudo, a figuração do olhar, uma janela para uma forma singular de enxergar, sentir e experienciar o mundo – o olhar de uma menina. A centralidade fornecida ao rosto de Marcielle, os close-ups em suas mãos e em seu corpo – no manejo do açaí, na brincadeira com a irmã, nas caminhadas e travessias pelo rio e pela floresta – nos oferecem passagem para atravessar, juntamente com ela, os seus traumas, angústias e dores. Os movimentos, toques e sensações – mesmo que muitas vezes dolorosas e repulsivas – assimilam a tensão sobre a qual atua a imagem e o som.
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Em dado momento, Marcielle, com o auxílio de uma amiga, procura atendimento em um centro comunitário para emitir sua carteira de identidade. Ela busca não apenas um documento, mas a construção de sua própria identidade, em um processo contínuo de descoberta de si, matizado por um olhar triste, exausto e marcado pelo trauma de uma infância interrompida. Aretha (Dira Paes), que mais tarde descobrimos ser uma policial infiltrada na comunidade para investigar redes de tráfico e abuso sexual de menores, percebe, desde então, a inquietação da menina.
Cabe aqui uma rápida especulação sobre o título do filme. O termo “mana” refere-se a um jeito informal e, de certa forma, carinhoso, de tratar uma irmã. Se, pois, ao início do longa, somos levados a focar na relação entre Marcielle e sua irmã, o desenrolar da narrativa revela uma rede mais complexa de relações: com a mãe, com a policial, com a dona do mercadinho, com a amiga que a introduz à realidade das balsas, entre outras. Certamente, é difícil que essas interações apresentem nuances doces ou tranquilas. No entanto, a ideia de sororidade sugerida pelo título se estende a uma nova perspectiva, uma possibilidade de interpretação que entrelaça a história ficcional de Marcielle e das mulheres de sua família às experiências reais de muitas famílias da comunidade de Marajó, que compartilham os mesmos espaços e, consequentemente, as mesmas cicatrizes.
Em entrevista concedida ao 26º Festival do Rio, a diretora Marianna Brennand afirmou que, após extensas pesquisas para o longa, percebeu que não desejava elaborar uma narrativa documental. "Eticamente, eu jamais colocaria crianças e mulheres que passaram por experiências de violência traumática para recontar essas histórias. Entendemos que apenas através da ficção poderíamos contar essa história," [2] declarou Brennand. Assim, optou por construir uma narrativa ficcional que retrata uma infância perdida, marcada pelo impacto no gesto, no movimento, na comunicação com o outro e nas estratégias de sobrevivência encontradas por meninas submetidas à exploração sexual. Mais do que um simples desejo de evidenciar a realidade, Manas figura um tecido dramático admirável que está interpelado, também, pela resistência e pela necessidade de não deixar com que essas histórias sejam esquecidas.
[1] LARROSA, Jorge. Niños atravessando el paisaje. Notas sobre cine e infancia. In: DUSSEL, Inés; GUTIERREZ, Daniela (org.) Educar la mirada: políticas y pedagogías de la imagen. Buenos Aires: Manantial, 2006.
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