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Foto do escritorLuiza Neves

Janela de Cinema 2024 | Pela memória que resta, "Ainda Estou Aqui"

Foto: Divulgação/ Sony Pictures Brasil


O Brasil é um país que cultua o silêncio. Nas mãos de um governo militar, inúmeras foram as histórias forjadas, apagadas e enterradas, muitas em uma eterna inconclusão. Aos agentes que operaram em prol da ditadura, pode ter restado culpa ou remorso, mas raramente punições legais. Mais recentemente, após os eventos do 8 de janeiro de 2023, vem sendo discutida a possibilidade de também ser concedida anistia aos envolvidos na intentona, ecoando o perdão mórbido dos anos de chumbo, e escancarando o perigo de uma história taciturna, jogada debaixo do tapete e pouco assimilada por uma nação.


Ainda Estou Aqui (2024), novo longa-metragem do realizador Walter Salles e representante oficial do Brasil na premiação do Oscar, é uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, mas com uma mudança em seu enfoque: o autor parte das próprias percepções para rememorar o desaparecimento de seu pai  – o deputado Rubens Paiva (Selton Mello) – e a eventual trajetória de sua mãe, enquanto o filme desloca suas lentes para encaixar esta última no centro da narrativa, buscando compreender a gama de acontecimentos através do olhar de Eunice (Fernanda Torres). Apoiado, principalmente, no rigor de sua mise-en-scène, o diretor utiliza-se do material base para tentar reconstruir a história de uma família em constante reestruturação.


Em um retrato inicial do que pode-se chamar, talvez, de "sonho carioca", é ilustrado um belo dia de praia, no qual banhos de mar e jogos de vôlei estão envoltos pelo calor e pelo colorido da paisagem. Ao lado de seu marido e de seus cinco filhos, Eunice desfruta de uma rotina de conforto, enfatizado pela leveza dos planos, dinâmicos e bem iluminados. É um cenário pitoresco que eleva o assombro do que está por vir. Da mesma localização à beira-mar, diante da expressividade dos carros vermelhos e amarelos estacionados na orla, irrompem vários caminhões do exército, pesados em seu contraste e agressivos na ameaça que representam. Quando batem à porta da família Paiva, a mesma escuridão toma conta: fecham as cortinas, tornam o ambiente escuro, os planos endurecem. Rubens Paiva é levado para prestar depoimento e nunca mais retorna.

Foto: Divulgação/ Sony Pictures Brasil


O filme caminha, de certa forma, por essa linha pedagógica durante todo seu percurso – imagética e narrativamente. Sobretudo nas cenas que  abordam aparatos jurídicos e jornalísticos, é comum ouvir-se explicações sobre os feitos do Estado que os era contemporâneo, sempre em tom esclarecedor, ressaltando como e por quais motivos as vias utilizadas para a manutenção do regime político eram erradas. É o único ponto do longa que corre o perigo de cair na repetição; quando somado às sensações já induzidas pelo que é visto, certo didatismo do roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega pode gerar algum incômodo. Entretanto, se enxergada a partir do ponto de vista de uma sociedade que ainda parece ter apreendido pouca noção dos horrores infligidos à época, não soa tão estranho o desígnio de querer reforçar alguns conceitos morais polarizantes.


A nuance de Ainda Estou Aqui, em meio a seus recursos estéticos trabalhados nessas dicotomias clássicas, vem através de Fernanda Torres. A protagonista, em seu dever de manter erguidos cinco filhos jovens, impede-se de ruir; o sofrimento interno que ela enfrenta é exposto ao espectador por meio de cada close-up de seu rosto, sempre carregado de uma miríade de emoções conflitantes. Ao conceder esse acesso ao espectador, Walter Salles permite com que a dor da situação se instaure de forma concomitante à de Eunice, sem recorrer a grandes rompantes de tristeza ou ódio. Em sua profunda angústia, tem-se uma personagem que também exprime grande força, e Torres alcança um excelente equilíbrio interpretativo que os mescla e os distingue. Mais tarde, quando Eunice é exibida já em idade mais avançada, muitos anos depois, a filha dá lugar à mãe, e Fernanda Montenegro entra em cena. Por via de um único olhar, transparece tudo que esteve contido no decorrer do filme. Eleva os patamares, arrebata as emoções e imprime a camada final da história.


Os debates sobre o que seria, de fato, o cinema político são extensos. Dar vida a certos tipos de histórias exige cuidado para não recair sob um patamar pouco crítico ou automatizado. Talvez o grande trunfo em trazer à tona crônicas de cunho mais pessoalizado seja, justamente, por carregarem uma carga pungente maior; Ainda Estou Aqui não parece tanto querer buscar grandes inovações cinematográficas, e mais realçar o aparato da memória, do resgate, da importância de dar nome às pessoas cujas histórias se tornaram fantasmagoria. Na famosa ideia de que um povo que não conhece sua passado está condenado a repeti-lo, sempre vale o lembrete de que certas ameaças, também, ainda estão aqui.




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