O cinema foi, por muito tempo, uma linguagem exclusiva àqueles que podiam arcar com os altos custos de produção, sendo ocupado em grande parte por um único ponto de vista: o hegemônico, branco. Nas últimas décadas, no entanto, as vozes antes marginalizadas na indústria começaram a ocupar mais espaço, demonstrando não apenas uma habilidade similar ou superior na construção de narrativas audiovisuais, mas também que a diversidade de novas percepções cinematográficas é essencial para o próprio avanço do meio. Em A Transformação de Canuto (dir. Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, 2023), as estruturas convencionais de documentário e ficção se entrelaçam, dando origem a uma obra inovadora, sensível e autêntica, e capturando a história, cultura e tradição de uma das comunidades Mbyá-Guarani, localizada entre o Brasil e a Argentina.
No filme, Ortega e Carvalho constroem uma matriosca narrativa: registram as gravações da reencenação de uma das histórias mais conhecidas daquela comunidade indígena — a da ressurreição do homem, Canuto, na forma de onça. Esse mise en abyme do mito, transformado em ficção e, depois, em documentário, não se encerra na estrutura pendular do longa, mas é presente até mesmo quando vemos cenas gravadas sendo assistidas pelo elenco e equipe de produção — além, claro, pelo próprio povo Mbyá-Guarani. Dessa forma, a exploração do formato cinematográfico reflete como o filme, em sua essência, não pode ser consumido apenas como forma de entretenimento, mas como uma construção coletiva e política que retorna à comunidade em um processo de antropofagia da imagem. É uma história que surge, se desenvolve e é concluída para os membros da comunidade.
É comentado, em uma das passagens do longa, que a ação política dos indígenas daquela aldeia se baseia não na violência, e sim nas palavras. Em um momento crucial de sua história, as lideranças sintetizam suas reivindicações em três pilares: o reconhecimento de suas terras, a educação de suas crianças e a documentação de cada membro Mbyá-Guarani.. A partir disso, a comunidade pôde crescer exponencialmente, conquistando novos espaços para a afirmação de sua identidade e preservação cultural.
Desse movimento político surge uma nova forma de preservar a cultura, agora também através das lentes do cinema. Com décadas de experiência no audiovisual, Ariel escolhe registrar aspectos da identidade de seu povo, transformando o cinema em ferramenta de valorização: um repositório de memórias, ideias e ancestralidade. A tecnologia abre espaço para uma linguagem capaz de, em tela, manter vivos os princípios e a espiritualidade tão estimados pelos Mbyá-Guarani.
É uma escolha, portanto, a construção de um filme como A Transformação de Canuto. As longas tomadas, os movimentos de câmera e a atenção dada a cada um de seus personagens são preenchidos por intenção, curiosidade e cuidado. Em uma sequência, acompanhamos a escolha da criança que interpretará Canuto na dramatização; num exercício, os meninos encaram a câmera e todos, exceto um, riem, brincam e se distraem. O escolhido, no entanto, assume para si o papel do homem-onça, com um olhar fixo, sério e contemplativo. O filme exige do espectador o mesmo nível de escolha, foco e intenção, sendo possível somente através destes a transformação, também, do olhar de quem assiste. É desafiador, denso, mas oferece como recompensa uma visão mais profunda sobre a espiritualidade do povo Mbyá-Guarani, tornando o ato de assistir uma jornada de descoberta e reflexão.
Inegável é a importância da direção de fotografia no longa. Cada deslocamento calculado e coreografado aparenta ser tão deliberado quanto as cenas estáticas, às vezes direcionando o olhar com um dinamismo quieto e paciente, outras compondo a imagem quase como se tentassem se esconder – sumir do espaço para que seus personagens sigam incorruptos por sua presença. Com uma montagem atenta, o filme toma todo o tempo necessário para elevar seus personagens e explorar os cenários da floresta e da aldeia. Em meio à neblina e tempestades, com o frio sempre presente, o ambiente soturno evoca um sentimento de expectativa, como se o espectador estivesse à espreita, aguardando uma revelação iminente.
Um dos pontos centrais do filme é a busca pela performance mais autêntica de Canuto: um homem profundamente conectado à natureza, distante das convenções sociais, ciumento e animalesco. Enquanto Álvaro, seu intérprete infantil, parece não ter dificuldade em adotar a mentalidade puramente sobrevivencialista do personagem, a escolha do ator adulto para dar vida a ele se torna um desafio durante a produção. No entanto, conforme o diretor Ariel Ortega vai exemplificando os comportamentos e jeitos de falar de Canuto, fica evidente que nenhuma outra pessoa conseguiria entregar uma performance na mesma profundidade que ele mesmo.
Embora os diretores participarem do elenco de seus filmes não seja uma novidade na história do cinema, em A Transformação de Canuto a autodireção de Ortega adiciona novas camadas de complexidade. Ele não apenas protagoniza a ficção, mas também se torna o foco do documentário, onde o impacto da performance em sua vida é examinado em paralelo. A partir do momento que foi escalado como Canuto, a impressão que fica é a de que Ariel passa a sempre ser acompanhado pelas lentes da câmera.
A Transformação de Canuto é mais do que um exercício de representação; é um mergulho nas raízes da cultura Mbyá-Guarani que desafia a audiência a rever seu próprio olhar. A imagem do homem-onça — indomável, natural e profundamente instintivo — reflete não apenas o personagem de Canuto, mas o próprio espírito do filme: algo que não pode ser domado ou adaptado aos moldes convencionais. Assim como o felino, que observa e conhece seu território de maneira intuitiva, a obra percorre os limites entre a ficção e o real, revelando uma experiência de identidade que desafia o espectador a enxergar além da superfície.
Em sua última cena, apesar da expectativa da transformação de Canuto em onça, vemos Álvaro deixando pronta uma armadilha de pássaros. É um recado sutil e sombrio: a visão do homem-onça pertence à comunidade, e os olhos de fora são intrusos, ameaçados de serem capturados pelo próprio desejo de ver o que não lhes pertence.
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