Foucault, em A vida dos homens infames, que parte da exumação dos arquivos do internamento do Hospital Geral e da Bastilha – e é um projeto constante desde a História da loucura – escreve sobre figuras que sofreram diante das instâncias de “poder” – seja ela a Igreja ou o Estado. Nomeando-as de “infames”, as biografias tentavam dar conta dos indivíduos que foram marginalizados, silenciados, que tiveram suas vidas destinadas “[...] a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros – breves, incisivos, com freqüência [sic] enigmáticos – a partir do momento de seu contato instantâneo com o poder” (Foucault, 2003).
Saidiya Hartman, em seu clássico texto Vênus em Dois Atos, reflete sobre as lacunas históricas sobre as pessoas escravizadas, sobre como o que se tem sobre elas é o que foi escrito pelas pessoas que detém o poder. Tanto o filósofo francês quanto a americana concordam na insuficiência dos arquivos para dar conta desses corpos violentados. Para tanto, Hartman pensa no que podemos chamar de “fabulação crítica”, ou seja, “[...] História de um passado irrecuperável; é uma narrativa do que talvez tivesse sido ou poderia ter sido; é uma História escrita com e contra o arquivo”.
Quando Rithy Panh, em A Imagem que Falta (2013), na impossibilidade de narrar apenas com arquivos o regime ditatorial de Pol Pot – que submeteu seu próprio povo à escravidão, escondeu corpos, perseguiu quem se opunha à revolução, resultando na morte de aproximadamente 2 milhões de pessoas – optou por fabular imageticamente. Em outras palavras, na representação através de pequenos bonecos feitos de argila, ele representa a si e sua família – esta também vítima do regime –, dando um novo nível de profundidade às formas de se lidar com a imagem do real. Essa atitude se deve, principalmente, às imagens detidas pelo poder: os registros da época se limitam apenas ao que o comando do Primo Número 1 desejava que fosse visto no exterior. Então, os campos onde a população era escravizada são vistos como um triunfo do trabalho laboral e comunitário; a ideia de liberdade e igualdade é defendida a plenos pulmões enquanto vozes são silenciadas por serem dissidentes.
O que Panh faz é colocar suas imagens contra as que contaram a História, desafiando-as e resistindo-as. O que Foucault e Hartman trazem em suas literaturas, o cineasta cambojano faz através de seus filmes. E Encontro com o Ditador (2024) é mais uma produção dele na tentativa de dar conta dos fatos à época, assim como evitar que, como ele menciona no final de A Imagem que Falta, ela deixe de ser buscada. Por meio de uma narrativa ficcional primordialmente – há momentos em que o documento tenta dar conta de fatos – o filme apresenta os jornalistas Lise (Irène Jacob), Paul (Cyril Gueï) e Alain (Grégoire Colin), que recebem acesso excepcional ao Khmer Vermelho durante o ápice da ação de Pol Pot. No entanto, ao chegarem ao país encontram uma farsa: eles permanecem com acesso restrito, saindo apenas para visitas oficiais a pequenos grupos de trabalhadores que, em silêncio, posam para as fotos da imprensa internacional. É sintomático quando o membro que atua como guia dos jornalistas indica: “Isso aqui vocês podem filmar”.
Os três jornalistas são retratados como figuras que, embora em posições de observação e mediação, acabam sendo também reféns do sistema de imagens que o regime impõe. As visitas “controladas” aos trabalhadores revelam o vazio por trás das imagens publicadas, que não apenas descontextualiza os eventos, mas os tornam quase intransponíveis em sua autenticidade. Ao mesmo tempo, Panh coloca em jogo a metáfora da imagem que falta, uma ausência crucial, não apenas do ponto de vista das testemunhas, mas também das próprias vítimas, que são alijadas da possibilidade de serem vistas como sujeitos reais em suas próprias narrativas.
As imagens que o regime manipula não dizem nada sobre a vida dos cambojanos, mas apenas servem para construir uma fachada de ordem e sucesso. E nessa produção de imagens superficiais o cineasta opta não apenas por suas intervenções por meio dos bonecos de argila – que parecem substituir imagens de violência – mas também por mesclar a ficção com imagens de arquivo. E não me refiro aqui apenas aos irrompimentos durante a narrativa, mas ao uso das mesmas durante as cenas, como reflexos ou plano de fundo. Panh segue buscando dar conta daquilo que o arquivo não consegue em sua completude, seja através da fabulação ou do testemunho.
Neste projeto em particular, mais do que simplesmente retratar o Camboja, o cineasta parece reflete sobre as ameaças ditatoriais ao redor do mundo. Na figura de Pol Pot, ele encontra a personificação sombria de muitos outros líderes autoritários que poderiam ocupar o mesmo rosto. Para ele, a maneira de combater o poder que constrói suas narrativas a partir das aparências é colocar imagem contra imagem. Em um momento histórico em que a manipulação visual confere, aos olhos do público, uma falsa sensação de veracidade, buscar no arquivo e no testemunho a potência daquilo que ficou oculto é, em si, um ato de resistência.
Referências Bibliográficas
FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e
escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
HARTMAN, S. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, v. 23, n. 3, p. 12–33, 2020.
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