A ideia das musas permeia tanto consciente quanto inconscientemente a sociedade ocidental. Filhas de Mnemosine e Zeus, as musas são figuras mitológicas que simbolizam a inspiração artística. A crença de que uma dessas divindades se comunica com o artista através do êxtase, incitando-o a criar, é uma noção sedutora e poderosa. Contudo, além das diversas questões relacionadas ao trabalho árduo do autor, a ideia de musas reforça estereótipos de gênero, uma vez que, tradicionalmente, são representadas como figuras femininas, inspirando artistas predominantemente masculinos. Isso pode perpetuar a visão da mulher como objeto passivo de inspiração, em vez de reconhecê-la como sujeito agente.
A Musa de Bonnard, filme de Martin Provost, distribuído no Brasil pela Califórnia Filmes, aborda essa temática de maneira clara já pelo título. O projeto, mais do que focar em Pierre Bonnard (interpretado por Vincent Macaigne), o chamado "pintor da felicidade" — uma rima intencional entre as palavras francesas Bonnard e bonheur, que significa felicidade —, pretende observar, nas obras do artista, o papel de Marthe de Meligny (Cécile de France), cujo nome verdadeiro era Maria Boursin. Provost explora o relacionamento conturbado que pautou a vida do casal por aproximadamente 50 anos, lançando luz sobre a importância de Marthe na vida e na obra de Bonnard.
Mas é justamente a partir desse ponto que o projeto caminha para um sentido distante do que aparentemente deseja. Um paralelo com Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), de Céline Sciamma, se faz possível, porque ambos os filmes partem de uma imagética semelhante, principalmente nos primeiros minutos do longa de Provost. Ao começar com a tela branca enquanto Pierre Bonnard desenha o corpo de Marthe, o cineasta coloca essa mulher nessa posição de inspiração/objeto. Em contraste, no filme de Sciamma, a história começa com um desenho do corpo da própria Marianne (Noémie Merlant), o que não só define o ponto de vista do filme, mas também apresenta a protagonista e sua relação com Heloïse (Adèle Haenel). Marianne é uma pintora que não apenas observa, mas é observada, e sua relação com Heloïse é construída em bases de igualdade e reciprocidade. A arte, nesse contexto, é um meio de conexão e reconhecimento mútuo, desafiando a noção de musa como objeto passivo.
A problemática em torno desse pequeno detalhe se dá precisamente pelo fato de que Provost não consegue transformar seu discurso em imagem. Em outros termos, ao colocar a personagem de Cécile de France como centro da narrativa, com a intenção de não reduzi-la a uma vítima impotente devorada por um predador genial, ele não consegue efetivar essa intenção através de sua abordagem de mise-en-scène. Em vez de explorar visualmente a complexidade de Marthe, ele opta pelo caminho mais fácil e menos inspirado: os diálogos expositivos. Consequentemente, não são poucos os momentos em que ouvimos frases como "por que são as mulheres que posam nuas e não os homens?", ou "por que meu rosto está sempre borrado?", ou ,ainda, "se eu fosse um homem…".
Por mais que a própria vida de Marthe seja encoberta por questões complexas – inclusive seu relacionamento com Bonnard – o filme opta por uma abordagem pouco inspirada e simplista, acreditando que seu discurso é mais viável por meio da fala do que através da própria forma como o corpo feminino é posto em cena. Marthe orbita em torno de Bonnard, tendo sua paixão por ele como guia, com muitos de seus desenvolvimentos pessoais (a pintura, por exemplo) ligados diretamente à possível rejeição do pintor em favor de uma "nova musa" inspiradora (personagem de Stacy Martin, que também surge como uma mulher que vive em função do personagem vivido por Macaigne).
Provost entende que os tempos mudaram e que as abordagens relativas ao ideário de musa também precisam ser atualizadas. No entanto, enquanto a ideia de modificação estiver atrelada apenas ao discurso verbal e não à forma cinematográfica, pouco se avançará, tanto na linguagem do cinema quanto nas questões políticas que a sétima arte busca – e precisa – abarcar.
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