Godzilla Minus One, de Takashi Yamazaki, é um filme que trabalha bastante em cima de questões estabelecidas pelo filme original de 1954, dirigido por Ishirō Honda, e o reverencia. Não à toa, a trilha sonora do filme original aparece no clímax dessa nova releitura, marcando toda uma apropriação formal, mas Minus One tem o seu principal diferencial relacionado ao seu tipo de abordagem quanto à narrativa. Godzilla (1954) é centrado em uma abordagem mais coletiva, na qual quase não existe um protagonista, e as cenas de destruição envolvendo Godzilla abrangem um panorama macro, uma vez que o espectador acompanha o Kaijū destruindo a cidade, e não um personagem específico em meio à destruição. Já Godzilla Minus One faz o uso de uma abordagem narrativa e dramática bem mais íntima, pois é centrada em um indivíduo. Enquanto o primeiro desejava criar uma desolação a partir da coletivização desse trauma, o filme de 2023 não só faz isso, como também escolhe um sujeito, que vai ser utilizado principalmente para questionar a guerra a partir de um novo viés, focado no caráter de irrelevância do indivíduo perante o todo e, principalmente, perante o Estado.
Os pilotos Kamikazes no Japão eram uma unidade de ataque especial na Segunda Guerra Mundial. Eles tinham o objetivo de realizar ataques suicidas com aviões militares. Godzilla Minus One acompanha Koichi Shikishima (Ryūnosuke Kamiki), um piloto Kamikaze que fugiu da sua missão durante a guerra e, com o fim do conflito e surgimento de uma nova ameaça, se vê confrontado pelo seu passado. Na guerra, o indivíduo, reduzido a um mero número, é induzido a perder a sua individualidade em prol de uma nação, não só por uma questão de honra, provinda dos samurais, como menciona o historiador Michael Anderson no artigo Kamikazes: entendendo os homens por trás do mito, publicado em dezembro de 2020 no International Journal of Naval History. Os Kamikazes, cujo termo tem origem das palavras ‘divino' (kami) e 'vento' (kaze), tinham uma obrigação política com o Estado, o que não deixa de evidenciar uma objetificação ainda maior desses soldados.
Takashi Yamazaki compreende bem esse teor e, através dessa abordagem mais intimista, trabalha em cima de um melodrama, que guia muito bem os sentimentos do protagonista. Muito interessante como, quando Koichi vai formando a sua família, nas cenas internas dentro de casa, o diretor remete bastante ao cinema de Yasujirō Ozu, ao usar esse espaço da casa japonesa e remeter tematicamente aos dramas familiares do consagrado diretor japonês. Além disso, uma das personagens principais se chama Noriko, algo que funciona como uma interessante referência à trilogia Noriko de Yasujirô Ozu.
Há uma abordagem dramática e narrativa diferentes, acompanhando a ação a partir de um ponto pessoal. Isso fica claro, por exemplo, se comparadas as cenas envolvendo um trem em ambas as obras, onde, no novo filme, o espectador acompanha Noriko do lado de dentro da locomotiva que é alvo do ataque, enquanto no clássico de 1954 tem-se somente uma visão externa do veículo. Godzilla Minus One mantém o tom épico, dramático e melancólico de suas sequências de destruição envolvendo o Kaiju, no que diz respeito ao seu antecessor. Ainda que épico, o filme cria uma desromantização muito forte em cima dos momentos de violência, mediante uma melancolia audiovisual, evidenciada pela trilha sonora e a lenta destruição, uma desesperança que passa pela própria guerra e trauma das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, e transforma Godzilla em uma bomba nuclear, destruindo tudo o que vem pela frente. O filme cria tanto drama nas suas cenas propriamente dramáticas, quanto quando apresenta isso de maneira mais visual e visceral através da ação.
Ambos personificam em Godzilla os traumas da guerra e do pós-guerra, sobretudo a partir do ataque nuclear. Esse monstro surge como só mais uma consequência da autodestruição humana. Contudo, enquanto o original de 1954 trabalha em cima de um viés mais burocrático e coletivo — trazendo um indivíduo que, ao criar uma arma de destruição em massa para deter Godzilla, acaba por se sacrificar em prol de um bem coletivo da nação —, o filme de 2023, a partir de uma abordagem pessoal e melodramática, busca explorar um efeito mais imediato da guerra no indivíduo, além de ser uma obra que vai acabar justamente questionando esse ato de “sacrifício”. A batalha final evidencia isso: mesmo que exista uma comoção de um “sacrifício” coletivo, quando os personagens abandonam o seu território familiar e vão enfrentar o monstro no mar, o longa apresenta justamente o contrário desse dito “sacrifício”, trazendo uma humanização em que cada personagem preza pela vida do outro acima de qualquer fim político e patriótico. Godzilla Minus One é um marco na história do famoso Kaiju no cinema, e se diferencia do filme original não só por trazer uma abordagem cinematográfica diferente, mas também por se aproveitar de uma bagagem histórica e mitológica para desconstruir questões políticas e sociais trazidas pelo longa anterior.
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