O Brasil é um país forjado por mitos e contradições. Dar conta de tantas camadas com precisão não cabe apenas ao documentário – tradicionalmente visto como o retrato da realidade, ainda que essa noção seja questionável – nem à ficção, que muitas vezes se vê limitada ao seu espectro dramático, recorrendo, com frequência, às distopias. Nos últimos anos, o Brasil tem produzido uma série de filmes que, ao invés de olharem para um futuro distante, se lançam sobre um presente paralelo onde o absurdo parece a única lógica possível. Filmes como Divino Amor (2019, dir. Gabriel Mascaro), Bacurau (2019, dir. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles), Medusa (2021, dir. Anita da Rocha Silveira), Samuel Foi Trabalhar (2024, dir. Janderson Felipe e Lucas Litrento) e Se Eu Tô Aqui é Por Mistério (2024, dir. Clari Ribeiro) são apenas alguns exemplos de uma produção recente que questiona e problematiza as camadas sociais e políticas do país, tentando compreender nossa posição no cenário atual através de lentes provocativas.
Nesse contexto, Anna Muylaert integra esse movimento com O Clube das Mulheres de Negócios, longa-metragem que surge num momento em que o cinema brasileiro, já saturado da ficção distópica pura, busca novos caminhos para refletir sobre a realidade. Incorporando elementos do horror, o filme propõe uma crítica da crise do patriarcado através de uma sociedade fictícia, na qual os papéis de gênero são invertidos: mulheres ocupam posições de poder, enquanto homens são socialmente condicionados à submissão. Para o espectador mais atento, a premissa evoca Eu Não Sou Um Homem Fácil (2018, dir. Éléonore Pourriat), mas as semelhanças entre os dois filmes limitam-se à estrutura inicial da narrativa. Conforme o enredo de Muylaert se desenvolve, emerge uma reflexão mais profunda sobre o Brasil como um país de mitos — que, saindo do imaginário, são construídos e vivenciados no cotidiano.
É interessante notar como Muylaert lida imageticamente com esses dilemas: ela cria um universo em que os personagens — ou melhor, as personagens-símbolos — são isoladas sob um sol brilhante, em uma paleta de cores fortes e antinaturais. Desde o princípio, a atmosfera de irrealidade do filme é estabelecida, e cada figura no quadro parece carregar um propósito claro, uma missão simbólica. Há uma personagem que ecoa a extrema-direita bolsonarista, uma bispa que remete a figuras como Silas Malafaia, e uma outra que evoca o arquétipo do executivo assediador. Essas mulheres, mais que indivíduos, são representações de ideias e comportamentos que espelham as condições políticas do contemporâneo. No entanto, não há a intenção de ir além dessas representações. Elas são máscaras de um pensamento crítico que se desenvolve mais pela caricatura do que pela profundidade psicológica. Os momentos de comédia, por sua vez, surgem quando essas figuras vivenciam seu próprio absurdo — nesse caso, não são poucos.
Essa abordagem, naturalmente, não impede que o filme apresente cenas mais densas, como a sequência em que a personagem de Grace Gianoukas assedia o jornalista interpretado por Rafael Vitti. O filme articula seus comentários críticos enquanto explora a escalada da situação, incluindo a fuga das onças, que se tornam a principal ameaça daquele espaço — uma metáfora que, embora previsível, funciona dentro da proposta. Entretanto, O Clube das Mulheres de Negócio cai na armadilha comum às obras que tentam, através da simbologia, retratar os dilemas de um país: o didatismo excessivo. As personagens frequentemente expressam suas opiniões de maneira óbvia, como se o discurso precisasse ser explicitado em palavras, quando as imagens por si só já comunicam através das caricaturas. A sequência final exemplifica isso: o sangue engolindo a nota de cinquenta reais enquanto os corpos femininos aparecem em cena.
Será que o trabalho de câmera objetificando os corpos masculinos, os exageros das personagens e a troca de dinheiro em espécie não seriam suficientes? É nesse aspecto que o longa de Muylaert parece questionar seu próprio exercício de gênero. Se é uma comédia caricata, por que não deixá-la falar por si? Se a natureza devora todas aquelas personagens numa perspectiva do horror, por que não permitir que o próprio ataque transmita essa mensagem? A consolidação de uma ideia frequentemente passa por uma suposta imagem-pregnante, ou seja, uma imagem que sintetize a temporalidade em si mesma; contudo, essa imagem perde sua força quando se torna meramente explicativa, quando seus símbolos viram evidências óbvias. Assim, embora o talento da diretora em abordar tantas camadas brasileiras seja notável nessa comédia, sua aparente insegurança com o exercício de gênero como fundamento desse processo compromete parte de sua lucidez.
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