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Foto do escritorGabriel Lucas

Entre o poder e o desejo: uma crítica de "O Bastardo"

Foto: Henrik Ohsten Zentropa / Divulgação: Pandora Filmes

Desde o surgimento do cinema narrativo, em meados do século passado, diversas criações cinematográficas têm buscado, a partir das sutilezas oferecidas pela linguagem fílmica, tensionar uma aproximação entre o espectador e a representação profunda de muitos aspectos da experiência humana. A sensibilidade que é provocada por um filme pode despertar um sentimento de dor, comoção, repúdio e, ao mesmo tempo, liberdade, contentamento e esperança. Se essas obras, de fato, desenvolvem ou não esses efeitos de forma bem sucedida parece ir de encontro à própria existência de uma experiência com a obra artística. O que sentimos diante de uma obra, apesar de não representar unilateralmente os significados inerentes a ela, revela nuances significativas sobre a cena, a performance e determinados outros aspectos da produção cinematográfica que colaboram no sucesso desse processo de recepção. Certamente, essa foi uma das percepções possíveis ao se assistir O Bastardo (2024), do diretor dinamarquês Nikolaj Arcel, no qual o desejo incessante pelo poder se entrelaça ao ensejo da esperança para provocar uma tensão rica e plenamente dramática durante longa-metragem.


O longa recebe um outro título em sua versão americana – The Promised Land – que dialoga fortemente com a sua premissa central. Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen) é um ex-comandante do exército dinamarquês que procura a permissão do rei para cultivar plantações em uma de suas terras, em troca da possibilidade de receber a posse desse espaço, colonizá-lo e adquirir uma almejável posição na nobreza. Contudo, os urzais que dominam a região revelam não só a improdutividade dessas terras como os desafios pelos quais Kahlen deverá passar para conseguir obter êxito em sua jornada. Dito isso, o longa é singularmente tecido por uma obstinada esperança pelo futuro, pelo poder e pela prosperidade que lhe é prometida.

Foto: Henrik Ohsten Zentropa / Divulgação: Pandora Filmes

O que há de mais singular aqui, entretanto, é a forma como o dramático é delineado a partir de um jogo com as diferentes relações de poder que estão circunscritas ao interesse pela “terra prometida”. Em inúmeros momentos, a ambição de Kahlen é testada e os limites de seu objetivo são constantemente provocados por, Frederik Schinkel (Simon Bennebjerg), um dos mais importantes lordes da região, quando este sente-se desafiado e teme a perda de seu domínio sobre as terras para alguém que não possua o sangue nobre. Com efeito, os atos que compõem a narrativa são evidentemente entrecortados por momentos decisórios tensos e meticulosamente posicionados: ora o protagonista deve decidir se irá ou não aceitar as propostas de Schinkel e abrir mão das promessas de um futuro próspero, ora se irá abandonar a Anmai Mus (Melina Hagberg), a menina cigana que acolheu e por quem desenvolveu afeição em sua casa. Curiosamente, essas linhas dramáticas são tecidas justamente no estilhaçamento dos limites morais, sociais e subjetivos que esses personagens tendem a precisar atravessar para garantir a conquista de suas próprias ambições.


Por fim, o tom dramático da diegese fílmica é amplamente corroborado pela encenação dos atores em seus respectivos papéis, com destaque especial a Mads Mikkelsen. Assim, sua performance descomunal reflete as idiossincrasias do personagem, desde a dualidade que se estabelece por meio da frieza e da emoção, do desejo e da perdição, do orgulho e da esperança. Percebe-se como as escolhas de composição dos personagens, de suas sensibilidades e da performance em cena colaboram com o discurso e refratam na existência de uma dualidade profunda intrínseca à natureza humana, a qual persistentemente evoca o ato de questionar o que representa maior importância e valor em nossas vidas. O espectador, ao distanciar-se o bastante para tomar consciência das elaborações estéticas e do gesto criativo que apresenta-se por trás do cinema, parece encontrar em O Bastardo momento harmônico e bem desenvolvido para a reflexão, a dúvida e, sobretudo, a emoção.


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