O contraste entre os hiper estímulos e as condições precárias de trabalho das grandes cidades com a imagem idílica de um campo que é visto enquanto refúgio foi um material do qual o cinema brasileiro se aproveitou muito ao longo de sua extensão. Como a história, presente em Moleque Tião (1943, dir. José Carlos Burle), do menino que saiu do interior e foi para o grande centro urbano em busca de realizar seus sonhos, encontrando lá somente uma série de desilusões de seus ideais. Ou o ir e vir vertiginoso de veículos e operários que se confundem num bloco maciço de mão de obra na grande metrópole brasileira em São Paulo, Sociedade Anônima (1965, dir. Luis Sérgio Person). Até mesmo na construção imagética de um interior lustroso e paradisíaco em Central do Brasil (1998, dir. Walter Salles). O mais interessante no trabalho mais recente de Juliana Rojas é como ela lança mão dessa dialética tão presente no audiovisual brasileiro e a reconfigura sobre uma ótica contemporânea, tanto nas ações em si quanto na forma como elas são representadas.
Cidade; Campo possui uma estrutura narrativa de natureza antológica. Enquanto o primeiro bloco do filme tem seu foco no centro urbano, o segundo dá ênfase ao interiorano, tendo como único vínculo entre as duas partes a temática que as transpassa. Essa escolha, inicialmente, causou medo, afinal era muito fácil descambar num senso comum — a cidade, agitada, tornaria o campo o refúgio ideal e “natural” diante tamanho tumulto. Tal noção é, de certa forma, construída na primeira metade do longa-metragem, mas a diretora se aproveita disso apenas para desconstruí-la naquela que a sucede, narrativa e formalmente.
No início, nos deparamos com Joana (Fernanda Vianna), uma mulher que, após o rompimento de uma barragem em Minas Gerais, teve de abandonar o seu lar — e, consequentemente, seus apegos, ainda que insista com que esses permaneçam imergindo no presente — passando a viver, então, com sua irmã em São Paulo. Aqui, há um maior rigor nos enquadramentos, havendo uma decupagem mais clássica que denota o domínio de Juliana sobre toda a encenação. Em um primeiro momento, é nítido o desconforto da personagem diante daquele cenário cinzento, desprovido de qualquer familiaridade, apesar de estar em um ambiente de conhecidos, no que tange a sua nova morada. A construção dessa mise en scène mais realista, ora ou outra, é irrompida por sequências fantásticas, que pintam o retrato do campo enquanto um cenário de fuga imaculado frente ao pesadelo que é tão somente existir na cidade. É como se esse ideal que mora no inconsciente da protagonista transbordasse sobre o concreto. Mas, no final, são meras imagens distrativas, impressões que pouco duram e tampouco alteram seu estado atual.
É no compartilhar das vivências com aqueles que a cercam, e a construção de novas memórias a partir desses encontros, que Joana passa a ter um olhar mais afetivo com o mundo que a envolve. E são nesses instantes que o filme alcança o seu melhor, dada a tamanha ternura e sutileza com que Juliana observa tais momentos. São tão genuínos que a verdade é derramada sobre a tela. Em dada ocasião, a protagonista se encontra na varanda de casa, fumando e observando a vizinhança ao redor. Seu sobrinho-neto, Jaime (Kalleb Oliveira), se aproxima dela, questionando o porquê de acordar tão cedo, visto que ainda era madrugada. Logo ele passa a contemplar juntamente a ela o despertar dos vizinhos. Nessa hora, o enquadramento é dividido por uma linha. Abaixo dela, há o chão e a horta que a personagem cultiva com tanto carinho ao longo da obra. Acima, os tantos prédios e postes de luz que compõem a cidade. Em uma só imagem, cidade e campo coexistem, ao mesmo tempo que são divididos por um traço, por um ponto e vírgula. A criança questiona sua tia-avó: será que eles também nos observam? E, sim, observamos. Com uma única pergunta, a diretora fez com que nós também fizéssemos parte desse encontro, do compartilhamento de todo um universo.
Entretanto, há certas ocasiões deste bloco narrativo em que Rojas opta uma abordagem mais frontal quanto a seus posicionamentos políticos, que acabam por destoar da sutileza com a qual ela lidava com a encenação até então. Não que a frontalidade em si seja um problema, mas a potência do filme reside justamente em sua camada mais subterrânea, quando suas temáticas vinham à tona mais através de um escoar do que pelo escancarar; quando surgiam mais por meio de uma construção delicada da imagem, do que pela transformação dos personagens em veículos, porta-vozes dessas percepções que dão base à obra. E é igualmente destoante o modo como há uma diluição de energia na parte seguinte do longa-metragem — sendo pouco envolvente comparado com a anterior —, visto que é dotada de lampejos instigantes, mas que não conseguem sustentar o todo.
É interessante o modo como esse segmento do filme se inicia, sendo diametralmente oposto ao primeiro. Nele, Flávia (Mirella Façanha), junto de sua companheira Mara (Bruna Linzmeyer), fazem a migração inversa — da cidade, se deslocam para o campo, na fazenda que a primeira herdou de seu pai recém falecido. Inicialmente, o casal se demonstra satisfeito com essa transição. A personagem interpretada por Bruna Linzmeyer chega a relatar como não se adaptou ao tempo veloz dos grandes centros urbanos – espaços estes onde tudo é abstrato e fugidio, enquanto no interior tudo é mais palpável e material. O medo que havia em relação a essa construção fácil e óbvia das regiões que fogem às cidades parecia, até então, se concretizar com esse começo.
Porém, à medida que ele progredia, o trabalho rigoroso com a composição dos planos, aliado ao tempo mais dilatado, de pouco em pouco, ia dissolvendo-o, e os flertes com o realismo fantástico se intensificaram. A floresta passou a não ser uma representação bela e exótica de desaceleração, mas um espaço desconhecido que, retratado por meio de uma câmera na mão oscilante, se mostrou como um palco capaz de gerar um autêntico terror. Há um desmanche na idealização envolta do laborioso dia a dia na fazenda, e ele começa a ser percebido de jeito árduo e dificultoso. Passa a ser introjetado um peso nas ações que a envolvem, que contrastam com a maneira prosaica através da qual era observado até o momento. Cria-se um cerco ao redor do sítio, gerado pelas ações do agronegócio, que tornam esse ambiente um originador de claustrofobia, indo na contramão da imagem contemplativa que se espera dele.
Contudo, a precisão com a qual a primeira parte do filme foi lidada se perde no segmento final. A impressão passada é de que a obra visa a aglutinar diferentes teses — apesar de ainda estarem vinculadas ao mesmo eixo temático —, e acaba sendo tangenciada em diferentes direções e estilísticas que dissipam o vínculo do espectador para com aquele mundo. A conexão estabelecida com as personagens do início não se replica em toda sua potencialidade com as do final, impedindo que o mote do filme atinja o público em toda sua intensidade. Beira ao contraditório como esse bloco narrativo aparenta, superficialmente, ser aquele que detém um cunho mais pessoal – e diria até mesmo autobiográfico – mas, ao mesmo tempo, é o que soa mais distante.
Narrativamente, as lembranças enquanto fio condutor temático se fazem mais presentes, mas não necessariamente sentidas. Os momentos que Joana se refere ao seu passado – seja através da fala, seja por meio de fotos – apesar de menos expostos em quantidade, eram mais eficientes e tocantes em comparação com os instantes em que Flávia se debruçava sobre a história de seu pai e suas raízes. Ainda assim, não deixa de surpreender o domínio e ímpeto com o qual Juliana direciona narrativas que, ao nível diegético, possuem uma conectividade nula, dando unidade a uma obra que aborda e desconstrói um tema explorado aos montes pelo cinema brasileiro.
Cidade; Campo, de sua camada mais interna até a mais exterior, denota como os espaços que nos cercam pouco ou até mesmo nada dizem se não forem embutidos de memória. Memórias essas que têm sua origem na construção de vínculos que, inseridos no cenário de um capitalismo tardio tão avançado, pouco encontram vazão para se proliferar — logo, a importância reside em sua tentativa de mantê-lo e, sempre, reconstruí-lo.
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