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Foto do escritorLuiza Neves

Em partes, um todo: "Queer"

“Tell me about despair, yours, and I will tell you mine.”

– Mary Oliver, ‘Wild Geese’


Divulgação / A24

A voz de Caetano Veloso toma conta da sala de cinema. “How can a man who sees and feels be other than sad?”, ressoa a frase na voz do cantor. Na tela, rolam os créditos, e permaneço sentada. Queer é hipnótico, avassalador. Desnorteia por seu tempo e espaço. Tomo alguns minutos, depois respiro fundo e me levanto, rumo à saída. Em minha cabeça, recomeça o filme.

I

William S. Burroughs escrevia sobre si através do personagem William Lee. Parte da chamada geração beat ao lado de outros grandes nomes, como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, Burroughs era cru, abrupto e denso em sua escrita. Desde Junky (1953) e Naked Lunch (1959), Lee é acometido por seu vício em opióides, mas é em Queer – escrito em 1952, mas somente publicado em 1985 – que suas emoções parecem atingir o ápice. Diferentemente dos dois primeiros, o livro que nomeia o filme acompanha um protagonista em abstinência, que encontra-se, nas palavras do próprio escritor, “desintegrado, em uma necessidade urgente por contato, completamente incerto de si e de seu propósito”. Como que prestes a se dissipar, é nessa busca por intimidade que o seguimos, na agonia e impaciência de quem percorre vários caminhos sem sucesso.

A Cidade do México de Luca Guadagnino é artificial, plástica, completamente imersiva. O céu é de um azul pouco natural, as flores das árvores são roxas demais, as ruas e casas muito geométricas. Algo ali perturba os sentidos, oprime a calmaria. Neste cenário, construído nos estúdios da Cinecittà, na periferia de Roma, Daniel Craig caminha, interpretando Lee. Entre uma bebida e outra, breves conversas e encontros com outros rapazes, a antecipação do advento principal se constrói; logo, um needle drop, uma câmera lenta, um plano que finalmente se fecha no jovem Eugene Allerton (Drew Starkey). Do descompasso, inicia-se uma jornada incerta.

Divulgação / A24

II

Nas palavras do próprio roteirista da obra, Justin Kuritzkes, Queer é menos sobre um amor não reciprocado do que dessincronizado. Allerton é quieto, inconstante e fugidio. Quando se depara com a atenção irrevogável de Lee, nunca dá-lhe certeza acerca de sua sexualidade, vontades e desejos. Quanto maior a extensão de sua presença, mais elusiva parece a ideia de alcançá-lo. Sentados nos bancos altos do Ship Ahoy – o bar mais famoso da trama – ou numa sala de cinema, Lee imagina-se estendendo as mãos e acariciando o rosto do jovem, numa sobreposição fantasmagórica de imagens que ilustram, simultaneamente, sua fantasia e seu refreamento na realidade. Eles assistem a Orfeu, de Jean Cocteau, e o mito grego, de repente, soa como outra ameaça.

O dilema antigo ressurge: de que vale o ter sem a fruição? William Lee é desesperado por contato, no sentido mais completo da coisa; um contato que assegure uma comunicação efetiva, um entendimento mútuo, um compartilhamento que lhe parece, até então, desconhecido, estrangeiro. Burroughs o define enquanto um fóton que, falhando em encontrar alguém que o observe, corre o risco de se dispersar. Sua busca pelo yagé, uma substância que ele acredita possuir propriedades telepáticas, não é nada menos do que uma tentativa desesperada de escoar todas as suas repressões. Talk without speaking. A linguagem, para além de limitante, se prova insuficiente, um instrumento que nunca trouxe bons resultados àquele que acompanhamos. 

Divulgação / A24

O que Guadagnino sempre entendeu é cristalizado neste último longa, o uso do corpo enquanto interlocução. Desde A Bigger Splash (2015), que lida com a incapacitação da fala, passando por Suspiria (2018) e o mais recente Rivais (2024), o interesse e marca de autoria do diretor italiano parecem culminar sempre no corpóreo, no tátil, em um desejo que borbulha sem jamais escoar em palavras que explicitam exatamente o que é sentido. Na dança, em um jogo, no literal mastigar de um coração, Luca é um dominador de olhares, consciente de cada movimento mínimo da câmera que comanda, da montagem que opera. Não tão de repente, muito de seu caminhar no cinema parece culminar aqui – foram muitos os anos visionando a realização de Queer.

Recordo-me de ter lido, em 2021, uma publicação que exibia trechos do memoir de James Ivory, diretor renomado e responsável pelo roteiro da até então mais consagrada obra de Guadagnino, Me Chame Pelo Seu Nome (2017). Entre vários desabafos, o cineasta americano exprime a frustração em relação à cena de sexo do longa, que, diferentemente da maneira como foi escrita, rapidamente se vira para a janela do quarto no qual o ato acontece, tirando de nós o direito de continuar naquele espaço. Mas eis onde discordo da declaração de Ivory, de que tal escolha tenha sido “decorosa” ou “morna”: Elio e Oliver, os protagonistas daquele filme, vivem tantos momentos secretos, na busca por privacidade que, quando finalmente expurgam parte daquela tensão, nada parece mais justo do que rendê-los a sós em sua intimidade. A história é triste, mas a dor da perda é de quem sabe que viveu algo real. Em Queer, nas demoradas cenas de sexo, mais explícitas do que o habitual da filmografia do italiano, algo me soava mais coerente do que nunca; Lee quer ser visto, e o espectador parece assumir uma posição de testemunha dos acontecimentos ilustrados na tela – Allerton, no que flutua, incorre no perigo de parecer quase imaginário, e nos cabe registrar, em nome de Lee, tudo que foi real.

III

Francis Bacon, especialmente entre as décadas de 1950 e 1960, construiu em suas pinturas retratos de humanos quase amorfos. Encarar seus quadros é quase como acompanhar alguém derretendo. Em um plano longo, que se inicia com a preparação de uma injeção de heroína e se fecha por mais de um minuto no rosto de Daniel Craig, tenho uma daquelas – para mim, raras – experiências de perder a visão periférica, borrar os contornos da tela e não piscar pelo tempo que a imagem demanda de mim. 

Toca New Order no fundo da cena; me emociono.

Francis Bacon, "Man Drinking". 1955, óleo sobre tela. © Francis Bacon

IV

A tão famosa viagem à América do Sul, numa trilha fervorosa pelo yagé, é frustrada no livro. Quando Burroughs menciona que, para ele, a escrita era uma forma de inoculação, de tentar controlar os fatos, entendo que a leitura do livro de repente perdeu tal efeito para mim, que parecia saber o que esperar da narrativa. As rédeas são cedidas, e não sei mais para onde ruma a história. Ao proporcionar uma excursão de sucesso inadvertido, em certos aspectos, ao seu protagonista, Guadagnino consagra outra marca de suas obras, o ato de sempre preservar o amor.

Divulgação / A24

Mudar o destino cravado na escrita de Burroughs parece, na verdade, atender perfeitamente às suas súplicas. Ceder controle, perder a cabeça, entregar-se à dança. Anteriormente, no que considero o melhor monólogo da obra, Lee afirma que somos todos partes de um todo, sem jamais saber explicar exatamente qual o significado daquilo que ele mesmo dizia. Mais tarde, ele conclui não ser queer, mas desincorporado – talvez “desencarnado” seja uma tradução ainda melhor. Permiti-lo uma trilha bem sucedida em relação ao seu desejo de comunicação telepática parece ser a chance que o diretor concede a William – Lee e Burroughs, cada vez mais um só – de finalmente sentir-se agarrado a algo. Um estupor, um toque febril, o auge da vulnerabilidade entre os dois amantes. O amor, aqui, não é paciente, e sim voraz, consumindo tudo que vê à frente de maneira quase violenta. Luca Guadagnino, em sequências delirantes, traz à tona os sentimentos mais reais possíveis.

V

Divulgação / A24

William S. Burroughs atirou em sua esposa, de forma fatal, no meio de uma suposta brincadeira entre os dois. Sua introdução à edição de Queer de 1985 toca no acidente de maneira breve, mas dolorida o suficiente, levando-o a concluir que, não fosse o infortúnio, talvez nunca tivesse se tornado escritor. No decorrer de suas palavras, há um aumento da solidão. Algum tipo de sentimento obscuro e cortante, que não cabe exatamente tentar definir, preenche o seio de quem o lê. Ao fim da adaptação do filme, os Williams parecem chegar juntos ao inevitável assombro de um amor que se foi.

A fantasmagoria é aterrorizante, penosa, dilacerante e persistente. Na eterna busca pelo toque em quem se deseja, conseguir o almejado carrega a promessa da perda que se segue. Caetano Veloso ecoa mais uma vez cantando, “did it even happen? What is an experience if it is not shared?”. Penso em Orfeu, no amor enquanto a tragédia fadada a se repetir; quem também não olharia para trás? A esperança é de que o resultado se altere, de que o final seja diferente. Há de se haver tal esperança. Lee e Allerton, frente a frente, se enxergam. A condenação é óbvia. Retornamos ao mito, reiniciamos a jornada, e Eurídice revive somente para desaparecer de novo, e de novo, e de novo.

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1 comentário


matheus rocha
matheus rocha
17 de dez. de 2024

que análise linda!!!!! em formato, em conteúdo, é um mergulho com as palavras em queer, na literatura e nas imagens. é emocionante demais ver tanta paixão num texto só!!

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