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Foto do escritorLuiza Neves

Em frente às portas do "Motel Destino"

Divulgação / Pandora Filmes

Gostaria de começar pelo final – ou, pelo menos, em algum ponto próximo dele – sem muito adiantar a história contada. À altura deste momento na sessão, numa sala pouco ocupada, o estímulo voyeurístico do cinema já surtia seu efeito, e eu aguardava curiosa uma conclusão para a trama que se desenrolava perante meus olhos. Eis que o soco não vem; a força de um impacto para o qual havia me preparado nunca chega. Da minha posição de espectadora, de repente entendi toda a obra com um tom de passividade. Rolaram os créditos, observei o tanto de textura presente nas imagens finais, reparei  na ausência delas durante o filme. Após meses de intriga, abaixei as armas para dizer: Motel Destino havia me decepcionado.         


Quando, à época de sua estreia no Festival de Cannes, li as primeiras críticas reticentes a seu respeito, afirmei que gringos jamais entenderiam a força da nossa cultura em tela do jeito que seria compreendida aqui – e, nesse sentido, teimo em manter a afirmação. Afinal, como explicar a euforia e o prazer ao presenciar Fábio Assunção, galã emblemático das novelas brasileiras, tentando dançar "Pega o Guanabara e Vem", de Wesley Safadão? Ou mesmo a estética brasileiríssima do estabelecimento que dá nome ao filme, em seu colorido e abafado que tanto ilustram o que é o Nordeste? O Ceará parecia já conseguir imprimir-se enquanto personagem, numa quase palpabilidade do ambiente. Em uma crítica cinematográfica particularmente famosa, Pauline Kael escreveu em defesa do filme Bonnie e Clyde (1967, dir. Arthur Penn), divisor de opiniões quando lançado, e argumentava que a parte intuitiva do longa era seu forte: a audiência reagia à obra ao reconhecê-la como sua, sem que precisasse compreender mais nada, como crianças entendem simplesmente gostar de algo. Um quê do mesmo sentimento ressoava em mim diante de Motel Destino, em consonância com a sensação de posse nacional que vinha defendendo. Um filme de brasileiro para brasileiro.

Divulgação / Pandora Filmes

No entanto, logo o poder da estética perdeu sua força. Utilizada de forma a situar uma atmosfera e estabelecer certas dinâmicas, cada vez mais parecia ceder espaço a uma narrativa que ambicionava chegar a muitos lugares, sem que nenhum fosse alcançado com clareza. Apesar das paisagens tropicais e gemidos constantes a servir de trilha sonora, a marca identitária se esvaía para conflitos diversos. Heraldo (Iago Xavier), após fracassar em uma missão para uma operação de tráfico, foge da quadrilha de que fazia parte e busca esconderijo no Motel. Nos confins do erotismo, ele se aproxima de Dayana (Nataly Rocha), proprietária do local junto a seu marido, Elias – o supracitado Fábio Assunção, cuja atuação merece maior destaque, em uma presença de instabilidade que acaba por ser o maior fio condutor da trama. De tal premissa, ergue-se um suposto thriller que apresenta pouco perigo, um triângulo amoroso que muda de tom e seriedade a todo tempo, medo e risco que parecem ter que ser relembrados aos personagens e à audiência.

Divulgação / Pandora Filmes

A volatilidade é menos notável – mas não completamente ausente – quando trata-se da libido presente no filme. É interessante pensar que, inseridos em um território que serve de abrigo para e cúmplice da incontinência carnal, Heraldo e Dayana não possuem a mesma liberdade de seus clientes. O motel, como espaço de privacidade e cautela, vira pano de fundo para a ilicitude do desejo. Os corredores internos, com trânsito reservado ao staff, abrigam segredos semelhantes àqueles possivelmente escondidos nos quartos. Não pude deixar de ser remetida a Amor à Flor da Pele (2000, dir. Wong Kar-wai), no qual toda a sensualidade vem do mesmo teor do proibido, de passagens e escadarias que resguardam encontros e desencontros. As cortinas esvoaçantes de Kar-wai e os varais que estendem os lençóis dos quartos do Motel explicitam, em seu vermelho vivo, toda a carga erótica que permeia os enredos. É quando Karim parece voltar à intencionalidade da cor, sem que o neon constante esgote a plasticidade de sua obra.

Divulgação / Pandora Filmes

Eu era a voyeur dos voyeurs, uma espectadora em conluio com os delitos e quebras de privacidade perpetrados pelos próprios personagens. Quando voltadas aos corredores, as cenas de Motel Destino novamente me conquistavam. Abrir as portas para os quartos, enfim, concretizou-se enquanto problema, ao demarcar sempre um novo conflito apresentado, uma camada emocional pouco convincente, a velha lembrança de que temores no porvir pareciam se aproximar – e me preparava, novamente, para uma colisão que não vinha. Ao elevar todos os riscos e, ao mesmo tempo, não estar disposto a atrever-se nas possíveis consequências, o longa parecia nos tirar o poder de atividade e estímulo. Juntamente a seu protagonista, agora estávamos apenas assistindo àquelas vidas passarem, cada vez mais com o entendimento de que o perigo iminente ficara para trás.


A incerteza do próprio filme em relação ao enfoque preferido culminou, pois, em uma didática emocional completamente apartada do tom construído em todo o seu decorrer. Embora as tentativas de atribuir as motivações de Heraldo a um passado turbulento já tivessem sido feitas – não de maneira muito satisfatória –, sua conclusão parece querer sanar quaisquer dúvidas quanto à origem de suas sensibilidades. O menino que vinha construindo em minha mente de repente tornou-se outro, e senti-me obrigada a, em retrospecto, reconsiderar o roteiro numa ótica de menor admiração. Depois de tantas tentativas em me agarrar àquilo que constatava enquanto autenticidade estética ou voluptuosidade triunfante, Motel Destino já não me ecoava mais como reconhecível em suas premissas e apostas, nem em seus diálogos e trejeitos. Como quem, com o tempo, perdeu de vista seu verdadeiro caminho, também pareceu faltar-lhe a coragem de escolher um novo. Disperso, então, confortou-se mais ou menos naquela atmosfera, em detrimento próprio; temendo em ficar, sem jamais ousar sair.

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