Um som desconcertante, que parece ao mesmo tempo estridente e abafado, rasga o céu acima dos prédios de uma cidade japonesa. É quase como uma sirene, mas às vezes chega a lembrar o urro de algo vivo. Não há certeza se o som existe somente para os membros da audiência ou se é real também para os personagens da narrativa. No quadro, há somente a cidade, aparentemente pacata e indiferente à sonoridade absurda com a qual o espectador é confrontado. Mas essa calma é ilusória, pois a cidade fervilha com as esperanças e infortúnios de seus habitantes, todos eles, conscientemente ou não, vivendo à sombra de uma besta invisível.
Monster, de Kore-Eda, não revela sua besta imageticamente, muito menos a concede forma corpórea. Em um movimento muito mais intrincado, utiliza de seu roteiro, dividido em três atos, para fazer localizar a criatura não só na história, mas em cada espectador que se preste a seguir o seu rastro. Essa trilha se inicia no primeiro ato: Saori (Sakura Ando) é uma jovem mãe, cuidando de Minato (Soya Kurokawa), uma criança que ainda lamenta a morte do pai. Aos poucos, Minato se torna o centro de vários acontecimentos estranhos: o sumiço de seus sapatos, terra em sua garrafa d’água, sangramentos sem explicação. Em um ponto da história, após ser localizado sozinho em um túnel em meio à floresta, atira-se do carro em movimento que o levaria para casa.
Os absurdos se acumulam em torno da figura da criança atormentada, a quem parece faltar linguagem para explicar a natureza de seus flagelos físicos e mentais, causando angústia não só a sua mãe, mas também à audiência. Assim, quando surge o indício de violência por parte do professor Hori (Eita Nagayama) como origem dos acontecimentos e justificativa para o comportamento de Minato, nos aliamos a Saori, em sua empreitada para garantir o bem-estar de seu filho contra uma escola apática, liderada pela diretora Fushimi (Yūko Tanata), cujo formalismo burocrático beira a alienação.
O corpo docente da instituição parece querer acobertar o professor, que acusa Minato de ser um jovem violento que persegue outros alunos, em particular o ingênuo e delicado Yori (Hinata Hiiragi). Saori insiste, e consegue o afastamento de Hori de seu cargo. Mesmo assim, o tormento de Minato não cessa, e, durante uma tempestade colossal, sua mãe entra no quarto do menino, deparando-se com a chuva invadindo a janela de um cômodo vazio. Mãe e audiência temem o pior.
Nesse ponto, Kore-Eda reforça o jogo de sua besta. O longa inicia o segundo ato retornando cronologicamente, e acompanhamos o mesmo desenrolar dos acontecimentos — desta vez, na perspectiva de Hori, vislumbrado agora como um professor comprometido com seus alunos, que usufrui da quieta simpatia de Fushimi, retornando enlutada aos seus deveres como diretora após enterrar seu neto. Minato ressurge, assim, surpreendentemente agressivo, atirando mochilas e esmurrando outras crianças. Essa virada de ponto de vista demove o professor de objeto de condenação, tão ansiosamente procurado no primeiro ato, e força a audiência a encontrar outra lógica e reconfigurar suas relações com os personagens.
Ao construir essa experiência, Monster bebe da tradição do whodunnit para estruturar sua narrativa, mas demarca uma diferença importante do gênero de investigação: aqui, cada encontro com um dos possíveis suspeitos adiciona a eles outra faceta, a partir da qual o espectador pode se relacionar emocionalmente, de forma até contraditória. Não há só uma confusão de lógica na compreensão dos eventos, mas uma perturbação empática, que desafia os afetos e convicções, embaralhando mais de uma vez as relações da audiência com os personagens. Monster é um suspense moral.
O jogo do roteiro é a trilha da besta, e cada virada de percepção sobre os personagens revela uma pegada da criatura, permitindo aproximação e entendimento. Seu rastreio se conclui no terceiro ato, sob a perspectiva de Minato. Retorna-se mais uma vez ao início da história, o que nos permite entender a sucessão de acontecimentos ao revelar as omissões e medos de Minato, despertados por um fato aterrador: o afeto romântico existente entre ele e seu colega de sala, o ingênuo Yori.
Aterrador por pintar a experiência de uma criança que se torna ciente de sua afetividade, em decorrência disso, aprende sobre seus medos e culpa, tão simultâneamente que parece não haver distinção entre essas emoções. Monster explicita que Minato sempre foi, de fato, uma criança a quem faltava linguagem para explicar seus próprios flagelos.
Mas limitar o tema do filme à homofobia, interna ou social, seria uma simplificação empobrecedora. Ela é, aqui, uma via de acesso, um dos nomes que pode dar forma a um caos interno, da vergonha que contamina a tentativa de viver o que parece ser justo. Esse sentimento complexo se faz presente quando Minato desvia desesperado do abraço de seu querido Yori; quando Saori se ajoelha em desespero em frente a Fushimi, em prol da integridade de seu filho; quando Hori corre pelas escadas de uma escola perseguindo uma criança, na tentativa de salvar seu emprego e sua honra.
As contradições desses sentimentos pairam sobre os personagens como o malabarismo empático do filme paira sobre os espectadores, todos unidos em desnorteio. É no entender dessa emoção como eixo principal da narrativa que o rastro monstruoso acaba e que se encontra a besta invisível de Hirokazu Kore-Eda.
Mas, se a besta pode ser um elemento de conexão entre os personagens, percebê-la parece ser um privilégio da audiência. O dilaceramento interno de Minato, Hori, Saori e Fushimi só avança as incompreensões externas, que encontram seu ápice na decisão de Minato de fugir de casa, durante a tempestade, ao encontro de Yori. Raros e tardios são os momentos em que há uma possibilidade de conexão entre os sujeitos da narrativa.
A mais marcante dessas instâncias é o rápido diálogo entre Minato e a diretora do colégio, já durante o terceiro ato, em uma sala de música vazia. A ela, o menino admite suas mentiras e temores. A ele, a mulher admite seu luto e passividade. Incapazes de se desvencilhar de suas dores, acabam por transbordá-las juntos. Próxima aos instrumentos de sopro, a diretora indica ao pupilo: “O que não puder contar a ninguém, assopre.”
Ambos utilizam dos instrumentos, sem afinação e sem esmero, cuspindo em som suas lástimas. Som esse que um bom ouvido reconhece como aquele descrito no primeiro parágrafo, ecoando sobre a cidade, provindo de dentro de seus habitantes e, talvez, de dentro dos espectadores. A confusão sobre a natureza do som nessa cena do segundo ato deve ser esclarecida quando a narrativa chega à sala de música. O som é a união dos dois instrumentos de sopro, mas, acima de tudo, é o som da besta, sua maneira de se fazer presente, mesmo que invisível. Quando Minato ecoa seus sentimentos através da janela, sobre os prédios e as pessoas, é o menino que ruge, e é a besta que chora.
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