“Eu não morri. Eu estou ao seu lado."
- Miyagi (Kinuyo Tanaka) em Contos da Lua Vaga
Spectrum. Essa foi a palavra escolhida por Roland Barthes para descrever aquele que é fotografado pela câmera, justificando que esse termo "[...] mantém, através de sua raiz, uma relação com o 'espetáculo' e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto" (Barthes, 2017, p. 15-16). Pensar a imagem fotográfica por esse aspecto fantasmático permite que façamos o mesmo, por consequência, com o cinema. Tomar a espectralidade como centro desta representação faz com que os fantasmas sejam não só uma figuração dentro da narrativa fílmica, mas também algo metafórico, uma arte do espectro, que vem fazendo parte das discussões teóricas do cinema desde o seu início. As imagens, então, ganham sinônimos como aparições, sombras, fantasmas ou, claro, espectro. Máximo Górki, escritor russo, após assistir aos filmes dos Irmãos Lumière em 1896, escreveu o seguinte:
A noite passada estive no Reino das sombras. [...] A visão é espantosa, porque o que se move são sombras, nada mais que sombras. Encantamentos e fantasmas, os espíritos infernais que fizeram desaparecer cidades inteiras no sonho eterno acodem à mente e é como se materializassem diante de ti [...]. (Górki, 1896).
Como ele, outros pensadores chegaram a questionar a imagem cinematográfica como essa "estrutura espectral", como nomeou Jacques Derrida. Edgar Morin, por sua vez, considerava o cinema uma arte da magia, justamente por "[...] sua qualidade implícita do duplo, os poderes da sombra e uma certa sensibilidade à fantasmagoria" (Morin apud Xavier, 2018, p. 126). Tais taxonomias não se referem meramente à permanência do vivo sob a forma da imagem, mas principalmente por carregar consigo a inerente capacidade da relação da imagem com as noções de vida e morte. O cinema, então, torna-se essa forma de expressão que vai além da simples reprodução visual da realidade. A imagem cinematográfica torna-se um meio pelo qual as fronteiras entre o tangível e o intangível, o presente e o ausente são borradas, dando lugar a uma narrativa visual que ecoa as nuances da existência humana.
Essa interação entre cinema e fantasmagoria revela-se como uma busca pela compreensão de si e do outro, onde a imagem cinematográfica atua como um portal para os mistérios da condição humana, explorando a complexidade inerente à natureza do homem. Seria fácil se utilizar da hipérbole para escrever sobre cineastas que conseguiram, de alguma forma, fazer com que essa relação se tornasse palpável no reino das sombras. Mas a verdade é que foram poucos, contáveis nos dedos. Entre eles, Kenji Mizoguchi. Entre seus filmes, Contos da Lua Vaga (Ugetsu Monogatari, 1953). O longa é uma adaptação de duas histórias presentes no livro de mesmo nome, escrito por Ueda Akinari. O filme se passa no século XVI, em meio às guerras civis japonesas. Genjuro (Masayuki Mori) vive com a esposa Miyagi (Kinuyo Tanaka) e seu filho pequeno à beira do lago Biwa. Ele é um ceramista que deseja enriquecer e conta com a ajuda de Tobei (Eitaro Ozawa), seu vizinho e irmão, um homem obcecado pela ideia de virar samurai, ao lado da esposa Ohama (Mitsuko Mito).
"Lucros feitos em tempos de guerra nunca duram", comenta um dos personagens a Miyagi, destacando a ganância tanto de Genjuro quanto de Tobei em conseguir riquezas em um momento de completa desolação. Mizoguchi, através deste diálogo, parece tecer uma análise social e moral, sugerindo que o resultado de tais atitudes tem consequências que mudarão a relação de todos esses personagens com relação ao mundo em que vivem e que, até então, conheceram. A guerra é sombria e as aspirações individuais se chocam com as realidades cruéis do destino. A metáfora das ilusões perseguidas pelos personagens ressoa como um eco trágico, que vai sendo sentido pela habilidade do cineasta em construir não apenas as nuances éticas dos personagens, mas também a atmosfera que perseguirá essa ambição. Logo, a opção do cineasta pelos planos longos se torna uma forma de fazer o espectador acessar esse mundo através dos gestos dos atores, mas, principalmente, pela forma que luz e sombra são trabalhadas no filme.
Após a invasão ao espaço quase idílico que dá início ao longa-metragem, os personagens centrais da história resolvem ir para outra cidade. Eis então uma das cenas mais marcantes do filme: a travessia no lago Biwa. À medida que a neblina densa e a voz de Ohama são engendradas na imagem, uma atmosfera hipnótica é construída. Os personagens parecem flutuar entre realidades, fazendo com que a cena não sirva apenas como uma transição geográfica, como também um portal simbólico para o desconhecido e para as consequências imprevisíveis que aguardam os protagonistas. A habilidade de Mizoguchi ao construir esse momento é o que provoca algo muito semelhante a uma ruptura: se antes estávamos diante de um tom realista, agora tanto os personagens quanto nós, espectadores, somos levados a um ambiente inseguro, por essência fantasmagórico, em que tudo se torna opaco. A partir da chegada a terra firme, o sucesso que os homens desejavam é alcançado, enquanto o peso da sociedade feudal reflete nos corpos femininos.
Lady Wasaka (Machiko Kyō) é mais uma personagem feminina cuja felicidade em terra lhe foi negada. Quando Genjuro a conhece, a relação de ambos se torna rapidamente algo que parece estar suspenso no tempo e no espaço, no limiar entre a vida e a morte. Ela, em seu castelo, começa a dançar, envolvendo o ceramista que a observa e o próprio espectador. Mizoguchi faz da sua câmera esse objeto de observação e transcendência, transformando o real em fantasmagórico através do domínio da mise-en-scène. As luzes diminuem, a música se torna mais grave e a voz de um homem ecoa, enquanto a câmera, em um movimento panorâmico lento, vai ao encontro de uma máscara que personifica o que é impalpável. A opção por essa lentidão é capaz de provocar a imersão do espectador, previamente hipnotizado pelos movimentos do corpo. O espírito de Lady Wasaka atrai Genjuro e quem assiste para o outro lado da imagem, para o mundo espectral.
Ao sair dele, ao dar-se conta de que tudo o que viveu era, na verdade, uma grande ilusão, o que resta é o retorno para casa, o deparar-se com a desolação de um povo e de um espaço. Esse retorno acontece exatamente como foi previsto no início: com consequências. Ao finalizar o filme exatamente no mesmo espaço em que começou, Mizoguchi leva seus personagens para o reinício, mas sem qualquer possibilidade de serem o que eram antes. Espíritos e corpos foram dilacerados. Os fantasmas do passado permanecem no presente como assombração e como lembrança. Contos da Lua Vaga, ao caminhar do preto da tela às luzes da sala que se acendem, se torna mais do que um filme — é uma meditação sobre a condição humana, uma odisseia estética que transcende a tela para tocar a alma. Mizoguchi constrói uma experiência imagética que se torna, de fato, fantasmagórica em seu sentido mais palpável, pois o que é vivo permanecerá para sempre gravado em película e assombrando nosso imaginário.
Referências Bibliográficas
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
GÓRKI, Máximo. O reino das sombras. Tradução de J.D. Brito. Disponível em: <http://www.tirodeletra.com.br/curiosidades/RelatodeMaximoGorkiaoverocinema.html> Acesso em: 3 fev 2024.
XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2018.
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