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Como ventilar o negativo na obra de arte?

Imagem de  A Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (Foto: Divulgação/ Imovision)
Imagem de A Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (Foto: Divulgação/ Imovision)

Legenda para o diálogo:

Wandryu Figuerêdo

Felipe André Silva



Não sei se é uma impressão minha ou algo que se intensificou com as redes sociais, mas está cada vez mais difícil falar sobre uma obra sem que o romantismo entre em cena — especialmente quando se trata das queridinhas da crítica e do público. No nosso cinema pernambucano, por exemplo, vejo dois movimentos: uma crítica que parece temer as consequências de comentar certos filmes, e outra que nem chega a ser crítica, mas sim pequenos comentários pulsantes no Letterboxd. É claro que sempre haverá preferências por certos autores e estéticas, mas também existe uma recusa, e talvez o que falte seja justamente elaborar esse pensamento da recusa. Num mundo tão atravessado pelo capital e pela afetação, como não pensar nas consequências de dizer o que se pensa de um filme? A crítica está presa? 


Eu acho que tem uma coisa muito interessante para se pensar aí, quando eu olho para o panorama do nosso cinema brasileiro, mas em específico do cinema pernambucano, que parece ser um receio, uma reticência em jogar contra. E aí parece que a crítica entra num lugar de jogar contra, e não necessariamente só a crítica negativa, mas ao falar de um filme com proposição, com reticência, com dúvida, você vira um inimigo, você vira um oponente no jogo, o que é muito perigoso. Me parece que depois que se estabeleceu uma lógica de mercado no cinema brasileiro nos últimos 15 anos, ou seja, o cinema brasileiro começou a ser vendido como um produto, com mais frequência pelo mundo afora. Então o debate crítico, que ainda existe, não estou negando que existe um debate crítico no cinema brasileiro, mas ele ficou muito centrado, ou preso, ou refreado, a espaço de específicos.


Então, você vai ter críticas de filmes de maior porte, por assim dizer, filmes de estúdio como Globo Filmes, ou filmes de grandes cineastas, como Anna Muylaert, como Kleber Mendonça Filho. Esses filmes ainda vão encontrar um pouco de debate. Mas, por exemplo, dentro do nosso sistema pernambucano, e sem citar nomes, os filmes de médio e pequeno porte, existe uma espécie de contrato velado de que não se debate esses filmes, ou que não se critica negativamente esses filmes, porque isso joga contra o processo do filme, a trajetória do filme. Isso é muito perigoso, porque a gente não cresce enquanto comunidade criativa, ou enquanto criadores, enquanto alguém não aponta o dedo e fala que discorda, e não é nem que não gosta, ou que está ruim, mas que discorda.


Eu sinto alguma dificuldade em entrar nesse tópico, porque eu já fui apontado durante muitos anos como um polemista, como um agitador cultural nas palavras do querido professor Laécio Ricardo. E o movimento que eu fazia não era de atacar, era de criticar frontalmente. Então é algo que me causa alguma ansiedade, mas sobre o que eu não tenho medo de debater. E aí eu queria saber de tu, por que é que tu acha que isso acontece? É só realmente um cuidado com o panorama, ou ninguém quer falar que é realmente ego, mas é ego? 


É curioso você mencionar o aspecto "polêmico" porque, na Nostalgia, escrevi três textos que, de certa forma, provocaram reações intensas: um sobre o fanatismo em torno de Fernanda Torres e Walter Salles, outro sobre A Primavera (dir. Daniel Aragão e Sérgio Bivar) e, por fim, cheguei a rascunhar um paralelo entre Emilia Pérez (dir. Jacques Audiard) e Vitória (dir. Andrucha Waddington e Breno Silveira). Na época, havia um debate fervoroso sobre representatividade na crítica brasileira, mas com uma seletividade estranha: enquanto Emilia Pérez era atacado por questões de autenticidade mexicana, Vitória passava incólume mesmo com Fernanda Montenegro interpretando uma personagem originalmente negra. Por que essa dualidade? Medo de perder seguidores?


Confesso que abandonei o texto por não querer ser reduzido a um "crítico polêmico", um "criador de caso"  ou ‘’chato’’. Mas aí me pergunto: quando a crítica vira "polêmica" só por discordar do consenso, não estamos falando mais de um problema da obra, mas do ambiente em torno dela?


No Bar Super 8 - importante ponto de encontro do cinema pernambucano em Recife -, percebo que há uma economia do afeto em jogo entre os trabalhadores do audiovisual, uma distribuição estratégica de elogios, quase como migalhas para manter certos nomes sob proteção, uma curtida ou um ‘’eu vou’’ já servem. Não acho que seja só ego (embora exista), mas um pacto social de preservação entre certas figuras do cinema pernambucano. É fácil criticar um Daniel Aragão, por exemplo, mas será que essa crítica, mesmo que construtiva, chega aos ouvidos certos? Ou vira apenas ruído no ecossistema fechado da cena? Lembro de uma pré-estreia na FUNDAJ: o filme era claramente ‘’ruim’’ (até os recursos visuais pareciam amadores), mas quando o/a/e cineasta pegou o microfone, havia um silêncio cúmplice na plateia — inclusive da própria equipe, que parecia insatisfeita.


Fiquei pensando: quantos filmes poderiam ser melhores se alguém, em algum momento, tivesse questionado algo? Nem precisa ser oficialmente um crítico; às vezes, basta um olhar crítico de uma pessoa comum (comentário do Letterboxd não serve aqui) Dois exemplos que me incomodam (e posso citar sem medo de retaliação): Medida Provisória (dir. Lázaro Ramos) e M8 (dir. Jeferson De). Ambos têm ideias relevantes, mas as imagens não sustentam o discurso, tudo vira didatismo, tática frequente no cinema pernambucano. Admito que são filmes importantes para o cinema negro brasileiro, mas poderiam ser muito melhores. E o pior de tudo: essa crítica raramente chega aos realizadores. Trabalhando no Super 8, vejo que muitos cineastas de curta só querem ouvir elogios. Mas as falhas são oportunidades. Se o pacto de silêncio continuar, como vamos evoluir nosso cinema que permanece há tanto tempo nas mesmas câmeras? Será que um dia esses cineastas terão acesso a uma crítica, não como ataque, mas como ferramenta de reflexão? No momento, estou pessimista. Mas talvez seja sobre dialogar, mas com cuidado. Sempre um cuidado para nós, trabalhadores do audiovisual pernambucano.


Eu acho muito interessante isso que tu fala, porque esse sentimento parece vir de um amálgama de coisas que levaram a gente para situação em que a gente está. Primeiro tem uma tecla em que eu bato muito, sobre como é positivo que o debate sobre cinema, sobre artes em geral, tenha se popularizado, se espalhado por várias frentes. Mas qual é o ônus disso? A gente começa a ter influencers de cinema que começam a pautar esses debates num lugar muito menos profundo, mas acreditando ter profundidade. Então você tem gente que vai falar sobre cinema sem nenhuma propriedade e influenciando várias outras pessoas a fazer o mesmo. É muito válido, muito interessante que muita gente esteja falando sobre filmes, mas é muito complicado a gente viver num panorama em que as pessoas podem falar o que quiser e acham que tem que ser tudo validado.


Você pode falar o que você quiser, mas você não precisa de validação, sobretudo quando você não tem o conhecimento para exigi-lá. E aí eu acho que isso desemboca também em outro lugar: o receio do debate, talvez por um aspecto identitário. Por conta de uma falta de espaço estrutural, foi necessário abrir espaço à força para filmes feitos por minorias, e aí criticar esses filmes em um instante da história do cinema brasileiro foi percebido como jogar contra, só que parece que esse sentimento perdura até hoje. Então falar mal de filmes feitos por pessoas pretas, por mulheres, por pessoas LGBTs se estigmatizou como um ataque, como crítica vazia, preconceituosa, o que é curioso porque é o tipo de prática que vinha dos grandes nomes ou dos nomes estabelecidos de um cinema cis hétero branco. Eu acho que isso saiu de um espaço de arrogância e foi para um espaço talvez de legitimação forçada. Porque eu, apesar de ter muitas questões com essa crítica violenta, eu acho que ela faz sentido, em certa medida. Eu acho que se você está expressando seu descontentamento com um objeto de arte, você não precisa se prender muito a um decoro para com a obra. Eu acho que você tem que ter decoro para com a pessoa, com o criador, ou criadora, tem que ter respeito pela pessoa que criou, mas com a obra não. E eu acho muito triste que essas duas percepções coisas se misturem muito, frequentemente.


Sempre que eu entro nesse assunto eu lembro de uma crônica do Victor Heringer chamada “A crítica explicada aos médicos, uma introdução”, em que muito resumidamente ele dá alguns conceitos de como explicar para uma pessoa que não é da arte qual é a função da crítica de arte, ou da teoria de arte, e em dado momento ele fala que é “o amor, e não o gosto, o motor da crítica, e o outro motor é o desgosto e não o ódio”, e é essa parte que eu acho que se confunde um pouco. Eu defendo você mover o seu texto a partir da chave que você quiser, mas se sentir completo por um objeto de arte ou incompleto deveria ser a base das questões e eu acho que as pessoas não colocam nessa chave, elas colocam numa chave um pouco mais utilitarista, uma dúvida sobre se funcionou ou não aquele filme, e a partir daí a maneira que elas têm para expressar isso é mais ou menos violenta. Eu acho que violência não é a palavra, mas pode ser.


É difícil não enxergar com pessimismo o atual cenário do debate cinematográfico nas plataformas digitais. A figura do "influencer de cinema" me parece uma contradição em si — algo que surge menos de uma paixão genuína pela sétima arte e mais de uma adaptação à lógica do capital, onde tudo vira conteúdo, até a crítica. O resultado? Textos que são apenas... textos. Escritos por demanda, sem profundidade, muitas vezes repetindo opiniões prontas para caber em algoritmos ou agradar a um nicho. 


O que mais me incomoda, porém, é a obsessão por validação que permeia tanto críticos quanto realizadores. Por mais que muitos diretores digam "não ligo para o que pensam do meu filme", basta observar o comportamento em festivais como Tiradentes: todos correm para checar notas no Letterboxd, respostas no Twitter, hashtags no Instagram. Há uma ansiedade coletiva em torno da recepção imediata, como se um filme só existisse de verdade quando validado por likes ou correntes. 


Mas cinema não deveria ser sobre isso. A obra em si já é uma vitória — especialmente no Brasil, onde fazer um filme é um ato de resistência. Se um diretor consegue colocar sua voz, sua essência, em um conjunto de imagens, isso por si só merece celebração. Claro, a crítica é importante, mas ela deveria vir de um lugar de engajamento honesto com a arte, não de uma necessidade de se afirmar como "o dono da opinião certa".


Sobre essa questão que você menciona Victor Heringer, me veio uma dúvida, o que caracteriza uma crítica romântica e uma crítica violenta? Porque já observei realizadores com receio de críticos que verbalizam que gostou do filme, porém, ele só deu 2,5 de 5 estrelas, isso para a pessoa foi um insulto. Como mediar isso? Parece que quando sentimos prazer, temos que oferecer sempre o máximo de uma avaliação. Ao rir no cinema, em um filme de comédia, eu já aumento a nota que está circulando nas minhas anotações ou pensamentos na minha cabeça? Ou espero o filme acabar? Bizarrices do nosso cinema.


Fu acho que posso estar enveredando por outro caminho, mas eu fico pensando muito como a geração Millenium, a geração X, gostam de criticar esse hiperestímulo da geração alfa ou talvez da geração Z. E uma das coisas mais criticadas é a necessidade de validação, a perda de espaços de competição, porque a competição não faria bem. Só que aí eu acho que isso é um pouco um espelho. A gente teve recentemente um caso de um diretor que atacou um crítico de cinema porque falou que ele não tinha direito de criticar uma obra a qual o diretor se dedicou tanto e aí é que está o problema. Dedicação não implica qualidade, números não implicam qualidade, o que implica qualidade varia para cada pessoa, mas a gente tem um mapa da mina, do que seria qualidade no cinema. Acho que é muito bom você pegar seu projeto, colocar ele debaixo do braço e seguir com ele acima de qualquer coisa, mas uma lição que eu aprendi muito cedo na minha carreira de cineasta foi que a crítica é soberana enquanto ela não invade o meu espaço pessoal, por assim dizer. Então eu não discuto com o crítico, se ele achou o filme ruim, se ele acabou com o filme, é o direito dele. E se só existissem críticas positivas, a gente não caminhava. Eu acho que uma crítica violenta é a crítica que te ataca enquanto pessoa, mas é muito perigoso usar esse termo de maneira leviana, porque hoje em dia a violência se tornou um guarda-chuva para tudo aquilo que a gente não gosta, e sei lá, eu acho que não gostar no campo da arte é muito bom, mas aí sou só eu.

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