Um burburinho soa na escuridão. O sinal toca, uma sala vazia e iluminada com mobílias preenche a tela. Oito jovens fardados e uma mulher entram em cena, realocando as mesas e ordenando as cadeiras em formato de círculo. Uma vez sentados, o burburinho cessa. Em uma breve tomada panorâmica, são apresentadas as razões de cada estudante frequentar a sala naquele dado momento, com respostas variando entre a assimilação aos gostos parentais e autoimagem. Trata-se de um curso nutricional proposto por Ms. Novak (Mia Wasikowska), uma espécie de guru alimentícia que promete aos pupilos uma rotina nutritiva, capaz de fornecer autocontrole e qualidade de vida. A longo prazo, representa o primeiro contato entre uma figura autoritária e um seleto catálogo de desajustados, pressionados a agir frente às demandas políticas e ambientais atravessadas pela contemporaneidade. Dividida em três planos, a primeira cena da recente obra de Jessica Hausner estabelece um ritmo dialógico efetivo com o público, apresentando-o à discussão através da câmera que circula frontalmente entre os participantes — tal como um espelho —, denotando tons satíricos a uma narrativa que se mostrará indigesta e flutuante entre a seriedade e o humor mordaz.
Sem estabelecer propriamente uma localização geográfica e temporal, Clube Zero (2023) se beneficia de uma perspectiva associada ao recente histórico do cinema austríaco: revelar os impulsos sombrios tão cuidadosamente escondidos sob o verniz eurocêntrico e capitalista. Hausner certamente ratifica o debate enquanto tendência e provoca um estado deliberativo de incerteza radical no público, apostando principalmente nas dicotomias e explorando a desestruturação do seio familiar. A própria composição dos enquadramentos revela a premissa baseada na matriz de controle, circundada pelos espaços geometricamente alinhados a uma arquitetura brutalista, que comporta uma instituição que exige um certo perfil daqueles que a frequentam, submetendo-os a padrões pré-estabelecidos e minando as expressividades. Aqui, a obediência desempenha um papel essencialmente dramático, indicando a crueldade impressa no atual regime social de imposição de costumes mascarados com falsas sensações de escolha.
Desconsiderando a prática essencialmente simbolista, como o fez em Little Joe (2019) e Lourdes (2009), Hausner opta por uma narrativa como sintoma da realidade, expressa tanto pela crueza dos planos quanto pelo trabalho da direção de arte, disposto a criar cenários de solidão e desconsolação. Mais especificamente, explora a relação intrínseca entre educação e paternidade, evidenciando a alienação das responsabilidades da segunda à primeira. Nesse ínterim, o valor da contextualização fornece ao longa um foco distinto à linha tênue que separa ideologia e manipulação, mesmo que não necessariamente apresente caminhos possíveis na distinção entre bem e mal, demonstrando maior interesse na falha sistêmica da estrutura que se instituiu o século XXI.
Advertida dos processos conturbados atravessados pela “geração Z”, Hausner compadece com os percalços enfrentados por aqueles nascidos imersos no mundo digital. Ao assimilá-los à composição dramática, gradativamente a fita utiliza como pilar o embate geracional. O diferencial, entretanto, é que a realizadora centraliza as discussões ao redor do hábito alimentar, refletindo através dessas escolhas as demandas sociais que circundam uma zona muito perigosa entre estilo de vida e fé, que constituem por sua vez processos identitários. Não à toa, os embates concentram-se ao redor das mesas, por vezes fartas ou restritivas, representando um ato humano basilar crivado pelo desconforto de ter que lidar com um ambiente inquisidor — seja pela recusa ao alimento preparado ou pelos comentários resolutos a respeito da aparência e desempenho socioformativo —, o que torna sintomática a incomunicabilidade.
Existe uma diferença abismal entre as partes frente às necessidades formativas. Enquanto os pais visivelmente não desejam lidar de maneira direta com a criação dos filhos, estes, por sua vez, desejam a insurreição diante das experiências intoleráveis, que a cada dia se tornam evidências comunitárias. Não por acaso a simples nominação “Clube Zero” é tão convidativa aos estudantes, sugerindo renovação e, mais importante, a participação em algo novo. Sabendo dessa premissa, o comportamento de Ms. Novak é ainda mais perverso, tendo em vista que se aproveita das fragilidades identitárias e deficiências sociais para manipular, tal qual uma verdadeira líder cultista ou replicando atitudes próprias às instituições normalizadas na vida cotidiana. Esse parâmetro de caracterização furtiva acaba por aproximar a fita de um lugar geralmente reservado ao conto de fadas, onde a criação de arquétipos corrobora com uma abordagem distanciada e, ao mesmo tempo, adensa um debate circunstancial que nutre certo cinismo frente às possibilidades reservadas pelo futuro.
Certamente pretensioso, Clube Zero articula questionamentos que atravessam gerações e papéis sociais, reforçando problemáticas concernentes ao imbricamento do mundo. Há um certo tipo de absurdo que circunda nossa existência, e Hausner o enfatiza através das inerentes contradições humanas, cuja brecha é atendida pela inteligente veiculação do humor. No fim, o que antes parecia uma espécie de descentralização, indexa, na verdade, um cenário desesperador, sublinhando os entraves de um mundo que preza pela coletividade e, contraditoriamente, não cessa de miná-la.
Comments