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Foto do escritorLuiz Gustavo

“Clube dos Vândalos”: Isto não é um motoqueiro

Foto: Focus Features

Ao começar este texto com uma negação a partir de seu título, arrisco perceber o filme como aquilo que ele não é. De agora em diante, após essa exposição de preocupação, penso que os encadeamentos de ideias aqui contidas reverberam uma percepção estilística da obra. Afirmo que Clube dos Vândalos (no original,The Bikeriders) não seriam motoqueiros por conta do embate entre imagem e discurso que permeia o filme. A direção de Jeff Nichols traça um limbo entre as imagens homogeneizadas daquele grupo e a narração de Kathy (Jodie Comer), namorada de um membro do clube.


Durante o filme, ela está sendo entrevistada por um universitário e conta a história de ascensão e queda daquela comunidade, descrevendo-os por suas violências e marginalidades. No entanto, isso não reverbera na tela, gerando uma superficialidade do seu discurso. Baseando-se apenas nessa contradição entre imagem e fala, não se percebe a personalidade de quem as expressa.


Para fundamentar tal reflexão, peguei emprestado algumas ideias de Foucault (2021) contidas no livro Isto não é um cachimbo. Nesse texto, o autor irá refletir sobre as associações entre imagem, linguagem e realidade a partir do quadro de René Magritte chamado A traição das imagens. Na pintura, a figura de um cachimbo é contrastada com o dizer “isto não é um cachimbo” escrito na tela. Para Foucault, não existiria uma relação de causalidade ou continuidade entre a imagem e o discurso. O objeto aqui iria ser inscrito na arte por um conflito entre a semelhança e a representação afirmativa para expor uma ruptura entre imagem e enunciado. Há o contato com uma perturbação no modo de representação que geraria metamorfoses sob o objeto. Ele não seria operado por uma identidade fixa, mas sim por deslizamentos e transformações. 

Foto: Focus Features

No filme, esse tensionamento pode ser observado desde sua primeira sequência. Nela, vemos de longe um homem sentado de costas em um banco de bar. Ele utiliza uma jaqueta de couro preta que possui um design atrás. A câmera se aproxima lentamente em um travelling em direção ao personagem de Austin Butler, Benny, e o revela em meio a uma discussão entre ele e outros dois homens, que acaba por se transformar em uma briga física. No entanto, o fluxo da ação é interrompido pelo congelamento da imagem e surgimento da voz em off de Kathy, namorada de Benny. É interessante notar como o seu discurso interrompe a agressão imagética que seu parceiro está sofrendo para falar sobre como ele a fez sofrer. A relação entre imagem e som ocorre a partir de uma não relação. 


Em outro momento, Kathy comenta sobre um episódio de vingança do clube, no qual eles queimam o bar onde ocorreu o ataque da cena descrita anteriormente. Ela expõe como estava se sentindo com medo naquela situação, e a descreve como assustadora. No entanto, isso não é sensibilizado, novamente, na imagem. No início da cena, homens com jaqueta de couro, sobre diversas motos e em profundidade de campo, encurralam um garçom, que está em primeiro plano. Aqui, o foco serve como forma de montagem, ao alternar entre eles na cena e guiar o nosso olhar a partir da ação em diálogo. O sentido criado é o fluxo do gesto, que abdica de um suspense que poderia estar contido na contemplação sobre a profundidade em tela.


Durante essa sequência, enquanto acende um cigarro, o líder do grupo, Johnny (Tom Hardy), diz para eles atearem fogo ao lugar. O uso de uma elipse oculta a ação. Isso torna a sequência entre a contemplação dos motociclistas e as chamas algo que não possui uma relação causal de poder. Eles olham a distância para bombeiros e policiais a partir de uma alteração do foco em profundidade de campo. O que parece um convite para a participação de um espectador ativo é transformado em uma falta de compromisso com a imagem por meio da exposição subjetiva dela nas palavras que saem da boca de Johnny: eles têm medo de nós

Foto: Mike Faist/ Focus Features

Essas imagens e outras, que se desenrolam em meio às narrações de Kathy, possuem um ponto de vista imagético e discursivo denotativo que carece de subjetivação, de conotação. A contradição do discurso diz que isto não é um motoqueiro sem também perceber as características de quem emite tal frase contra as imagens. Assim, os fragmentos de memórias da formação e queda desse grupo são retratados a partir de uma generalidade, e isso pode ser observado na maneira como os elementos visuais são expressos. Como ocorre, por exemplo, durante as sequências em que estão reunidos fazendo piquenique. Apesar de Kathy estar inserida minimamente na situação do passado, não existe uma subjetividade sobre ela e nem uma especificidade do olhar do presente sobre essas imagens. Passado e presente não estão conectados de forma coexistente. Durante os planos, não existe uma visibilidade para a experiência dela naquele espaço, e ela se isola no extracampo. Não de uma forma que sou convidado a imaginar sua existência, mas, ao invés disso, a montagem me conduz entre a ação e reação daqueles motociclistas.


A câmera assume uma função de objetividade ao registrar todos aqueles homens de uma maneira desigual. Alguns são captados em câmera lenta, enquanto com outros temos o uso de câmera na mão. Esses usos de linguagem não se relacionam e geram uma dissolução formal entre aquelas pessoas. Percebemos, assim, como em nenhum momento isso está associado à presença da narradora. As imagens não registram subjetivamente sua não relação. Nossa percepção é a de verdades coletivas, e não fruto da experiência de um sujeito. No entanto, também noto que essa objetividade do discurso de Kathy aparece na última cena de uma maneira divergente da que foi retratada até ali na obra. Nesse momento, narrativamente, Johnny desiste de fazer parte do clube e volta a morar com Kathy, que tinha lhe feito um ultimato: ela ou o grupo. Segundo as palavras dela: ele não sente falta de andar de moto com aquelas pessoas e eles dois estão felizes agora. 


Ela diz isso enquanto encara o namorado pela janela de sua cozinha. A câmera se prolonga sobre a troca de olhares que ocorre entre ambos. Essas palavras na entrevista ativam na imagem uma potência do falso, sendo este uma forma de força criadora. Temos uma imagem que torna indiscernível o verdadeiro e o falso, uma imagem ambígua. Enquanto imagens da caracterização passada de Johnny invadem a mente e entram em conflito com sua aparência atual na tela, ela usa da representação afirmativa das palavras para dizer, em meio a traços de moralismo: isto não é um motoqueiro. 


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