Distribuição, Estética e Política: Entrevista com Lia Bahia
- Felipe Duarte
- 9 de abr.
- 15 min de leitura
Atualizado: 20 de abr.

Conforme se desenrola o que está sendo chamado de Nova Retomada, o cinema brasileiro entra em uma nova fase enfrentando ainda problemas antigos, que vão desde o acesso do público aos filmes nacionais até o tipo de repertório que conquista atenção das cinefilias. Mesmo assim, a movimentação ao redor da sétima arte brasileira traz ânimo para enfrentar essas velhas questões em novos cenários. Uma das maneiras de avançar nesse enfrentamento é ampliar o nosso conhecimento desses cenários e de tudo que a palavra “cinema” significa no país.
Com esse intuito, a Nostalgia abre a Coluna Circulando, espaço dedicado a compreender o trabalho, a política, a pesquisa e a indústria do cinema brasileiro, entrevistando aqueles que o movimentam em todos os cantos do país. Para essa entrevista inaugural, conversamos com Lia Bahia, pesquisadora de políticas públicas de projeção nacional, sobre o "Calcanhar de Aquiles" do audiovisual nacional: as políticas de distribuição. Bahia discute com a gente a história da distribuição nacional, seus comparativos com o cinema americano e como essa realidade moldou o olhar do Brasil, para o cinema e para si mesmo.
Felipe Duarte: O sucesso de Ainda Estou Aqui trouxe uma atenção maior ao cinema brasileiro, inclusive e principalmente dentro do país. Ainda assim, parece haver uma resistência em certos setores da cinefilia e da academia em admitir essa atenção mais popular ao produto audiovisual interno, quando o olhar que se torna agora aos filmes brasileiros é muito moldado por estéticas estrangeiras. Essa espectatorialidade, no entanto, é o resultado de políticas de distribuição do nosso país. O estado da política de distribuição surge como um indicador do estado da indústria como um todo, e ainda hoje é o grande calo no ciclo econômico do cinema brasileiro. Mesmo assim, existe uma dificuldade em abordar o tema de maneira ampla.
Lia Bahia: A história do cinema brasileiro, especialmente em sua relação com o Estado, está profundamente ancorada na produção. Por muito tempo, a distribuição recebeu pouca atenção. Eu, inclusive, tenho utilizado mais o termo "circulação" do que "distribuição", porque acredito que a circulação amplia a perspectiva, permitindo que a gente pense, por exemplo, em cineclubes ou exibição em escolas, algo que também precisa ser revisado. Talvez a ideia tradicional de distribuição vinculada à sala de cinema não seja suficiente para abranger o cinema brasileiro como um todo.
Estivemos recentemente no Fórum de Tiradentes, onde coordenei o Grupo de Trabalho (GT) de distribuição. Decidimos adotar o termo "circulação" desde o início, justamente para refletir uma abordagem mais ampla. A grande questão que se coloca é: como chegar até os públicos? Como alcançar esses públicos? A indústria norte-americana entendeu que precisava ocupar espaços além do mercado dominante. Aqui no Brasil, ficamos produzindo, produzindo, e, olha, pelo amor de Deus, a culpa não está nos filmes. Precisamos continuar produzindo, isso não está em debate. A questão não é simplesmente "vamos parar de produzir" ou "vamos produzir apenas o que tenha garantia de sucesso de público". Mas eu pergunto: que público é esse? Eu acredito que cada filme tem seu público, e talvez esse público não esteja nas salas de cinema.
Vou dar um exemplo claro: recentemente foi lançada na plataforma Embaúba Play uma mostra focada no cineasta Lincoln Péricles, organizada pela distribuidora. Onde você pode assistir aos filmes de Lincoln Péricles? Em festivais, mas dificilmente em cinemas comerciais. Nesse caso, o público que consome esses filmes não está nas salas de cinema, o que significa que ele não é contabilizado pelos dados oficiais da indústria cinematográfica. Isso gera uma incoerência na formulação das políticas públicas para o setor.
O que eu defendo é que comecemos a pensar em novos dados, novos indicadores qualitativos, que permitam uma avaliação mais ampla da circulação do cinema brasileiro, sem se limitar às salas de cinema. Embora a sala de cinema continue sendo um fenômeno importante, é um tanto cruel querer que o cinema brasileiro se resuma a isso. Não somos Walter Salles, não temos o orçamento da Sony, nem o dinheiro de uma grande campanha de marketing voltada para o Oscar. Recentemente, levei minha filha de 11 anos para assistir ao filme, e ele é muito palatável. Não estou criticando o filme em si, mas é evidente que ele foi pensado para ser acessível ao público, e provavelmente esse foi o objetivo do diretor. Não há problema nisso, mas é importante frisar que o cinema brasileiro não é apenas isso.
Sempre dou o exemplo do filme Cabeça de Nêgo (2020, dir. Déo Cardoso). A Thalita Arruda fez uma distribuição incrível, especialmente durante a pandemia, quando conectou o filme a escolas públicas. Porém, os dados da Ancine refletem apenas a exibição nas salas de cinema, enquanto o filme alcançou muito mais pessoas. Isso evidencia a limitação dos dados oficiais e a necessidade de repensarmos como medimos e incentivamos a circulação do cinema brasileiro.
Você trabalhou na ANCINE, na RioFilme, na ESPM e atualmente na UFF, sempre com um trabalho voltado para o cinema como indústria, quando mais comumente as pessoas se aproximam do cinema pela estética, pela ficção, pelo repertório fílmico. O que levou a essa paixão pela distribuição, e pelo cinema como economia, como indústria?
Quando fiz graduação em jornalismo, queria trabalhar com cinema. Só que, cara, essa ideia de set de filmagem, para mim, eu achava muito violenta. Eu achava o set de filmagem – não sei como é hoje em dia, mas já tenho 45 anos – um ambiente muito tóxico, muito violento. Sempre tive interesse por política pública e por essa dimensão da economia política, porque não é só economia, é uma economia política. Meu primeiro emprego foi na Ancine. Quando fui para a Ancine, percebi que havia algo muito interessante para a gente estudar, mas muito pouca gente estudava isso na época. Hoje em dia, o campo já se expandiu, ainda bem. Temos novos formatos, novas pessoas. Mas foi ali que fiz essa descoberta, algo de falar, porque toda a nossa história está ligada à estética, à narrativa, aos autores, aos diretores.
Mas aí a gente tem que falar sobre economia política, porque acho que essa economia política e as políticas públicas estão diretamente conectadas à estética. Uma dimensão ética-estética não está desconectada disso. Quando vejo o pessoal da Filme de Plástico produzindo, quando vejo, sei lá, o Affonso Uchôa, Adirley Queirós, essa galera da periferia, dá para dizer que estão fazendo isso por causa da política pública, e aí surgem novas narrativas, um novo tipo de estética. Então, acho que está tudo meio interligado. Não consigo entender dessa forma: de um lado, a estética, e de outro, a economia política. Para mim, está tudo junto, sabe?
Falando em distribuição\: Em que local e em que momento a gente cristaliza a ideia da distribuição como uma fase a ser institucionalizada no país?
Na verdade, eu acho que a gente nunca teve isso muito claro. Acho que, na época da Embrafilme, tivemos um departamento de distribuição que foi muito importante. Naquele momento, a Embrafilme tinha uma distribuidora estatal que teve um papel fundamental. A gente estava sob governo militar, com uma ditadura, e a Embrafilme tinha, de fato, esse departamento de distribuição. Alguns pesquisadores afirmam que a distribuidora da Embrafilme foi o coração da instituição, porque percebia-se que, além da produção, a distribuição também estava ali. Então, naquele momento, houve o entendimento de que a distribuição era fundamental. Mas ainda acho que a gente não tem essa compreensão. Não vejo uma percepção de que a distribuição seja essencial. A ideia predominante parece ser a de que vamos industrializar o cinema brasileiro a partir da produção. Produção, produção, produção, produção, produção. Sem uma visão mais sistêmica do todo.
Ao mesmo tempo, a gente observa que a indústria americana despontou muito cedo para a consciência da distribuição como norteador da indústria.
Exatamente, os Estados Unidos institucionalizam isso, dizendo que a distribuição é o negócio, não a produção. Então, se é Moana, Toy Story, tanto faz. O importante é que, em janeiro, no dia 14, vai ter um filme da Disney sendo lançado. Eles sacam isso muito cedo. Olha que interessante: estamos falando da internacionalização do cinema brasileiro, mas eles já sacaram isso desde 1915. E agora, com o streaming, isso foi potencializado a mil. E aí você percebe como a economia política se relaciona com a questão da estética e da formação do olhar? Porque agora, qual é a nossa referência de produção? Na minha geração, eram as majors. Eu amo Indiana Jones, fui formada por isso. Hoje em dia, não. Hoje, a galera mais jovem é formada pelas séries. E elas se tornaram a grande referência estética. E acho muito violento, sabe? Tem um termo que os curadores da Mostra de Tiradentes usaram, que eu gostei muito, que eles dizem: 'A gente precisa de uma soberania imaginativa'. Eu amei esse termo. Eu gostei muito, porque é isso, assim, caramba, a gente precisa se livrar um pouco desse colonialismo, sabe? Que vem com as majors e agora vem de uma forma ainda mais densa com o streaming, a meu ver
Ainda focando no cinema estadunidense, você menciona as majors, como a Paramount, que abriu seu primeiro escritório no Brasil em 1915. O modelo de distribuição desse tipo de empresa sempre visou um nível internacional?
Sim, por que o que eles queriam? Eles queriam fazer grandes produções para ninguém competir com eles. Estávamos no período das guerras, e eles disseram: 'Vamos fazer uma grande superprodução, que ninguém vai conseguir chegar ao que temos, nessa escala de produção.' E para pagar essa produção, que é cara, o mercado doméstico não vai ser suficiente. Então, precisávamos internacionalizar. Há uma questão de internacionalização desde muito cedo, justamente para sustentar esse tipo de produção.
Isso se conecta com que foi dito antes: sobre o modelo de distribuição como uma forma de educação estética como esse tipo de linguagem, que faz a gente ansiar, se tornar demanda para esse mercado estrangeiro.
E a própria mídia, várias publicações da época. Na tese do Pedro Pucci, ele menciona isso: várias publicações reforçavam essa ideia, que era, na verdade, da indústria norte-americana, dizendo: 'Olha como somos maravilhosos.' Então, tinha o filme, a crítica, todo mundo pensando nisso, dizendo: 'Olha como somos incríveis e ninguém consegue alcançar.' E a gente acaba ficando com essa síndrome de vira-lata, quando, na verdade, eu acho que não é bem assim. Acho que são tempos históricos diferentes.
Voltando esse foco o Brasil, ao longo do último século de relação com o cinema americano, a gente vê oscilações do cinema nacional e dos órgãos que organizam esse cinema: INC e INCE na Era Vargas, a Embrafilme na ditadura e agora ANCINE. Algum deles se destaca sendo mais capaz de resistir à oferta estrangeira e valorizar o cinema brasileiro?
Eu sempre achei que a Embrafilme, por ser uma criação da ditadura militar, nunca poderia ser considerada completamente boa, mas ela teve sua importância, principalmente para o Cinema Novo, e especialmente para o Rio de Janeiro. No entanto, ela é fruto da ditadura militar. Quando Gilberto Gil introduziu o novo conceito de cultura, ele estabeleceu esse mecanismo dos editais, que, naquele momento, foi importante. Hoje em dia, acho que não deveria ser mais apenas por edital, mas ele conseguiu, a partir dos editais e do novo conceito de cultura, abrir um pouco mais para a cena, afirmando que todos têm o direito de fazer cinema, não apenas de assistir. A partir disso, alguns territórios e realizadores surgiram, assim como distribuidoras.
Se não tivéssemos, por exemplo, uma distribuidora como a Vitrine, que começou pequena e foi distribuindo os filmes do Kleber, a gente não teria acesso a esse tipo de cinema. Kleber também é uma referência, porque, apesar de não ser da periferia, representa um tipo de cinema que é fundamental para essa nova cena. Então, você começa a ter novos realizadores, e, sem novas distribuidoras, esses filmes também não chegariam até nós. Acho que, naquele momento, com a gestão do Gil e o novo conceito de cultura, pensando que a cultura é um direito de todos, tivemos algo que chamo de um semi-reformismo. Tivemos novos realizadores, novas estéticas – como a Filme de Plástico, Adirley, Affonso Uchôa, Glenda Nicácio e Ari Rosa, da Rosa Filmes, com Café com Canela.
Essas pessoas começaram a fazer outro tipo de cinema, com outra estética e ética, porque as relações de trabalho também mudaram. É uma nova lógica de fazer cinema. A distribuição também mudou, porque esses filmes não seriam lançados com mil cópias. A distribuição agora é outra: com debate, indo para as universidades, pensando de uma forma diferente. No entanto, ainda ficamos muito presos ao modelo de market share, um sistema comercial de market share. E acho que isso é um problema institucional.
Abrangendo um pouco mais para além do cinema, em uma entrevista recente para mídia estrangeira a Fernanda Torres falou sobre a importância da novela para formação do olhar brasileiro, que nos ensinou a assistir nossa própria língua. Você acha que a cinefilia, a academia e a indústria dão o devido peso a esse formato?
Minha tese é sobre a relação entre cinema e televisão. Eu gosto de novela, sempre assisti. Mas acho que existe um preconceito enorme. Quando fui fazer o meu doutorado, não havia nada que falasse sobre a relação entre cinema e televisão. Pelo contrário, essas duas coisas eram vistas como espaços dicotômicos. Mas, na verdade, há uma circulação silenciosa que passa pelas novelas. Algo mais evidente no trabalho de Eduardo Coutinho. Perceba, minha geração cresceu com isso... Hoje em dia, todo mundo quer trabalhar na Globo, por bem e por mal, né? E aí também tem esse 'por bem e por mal'.
Hoje em dia, muitos cineastas formados em universidades públicas estão trabalhando nas novelas. E acho que ela tem razão quando diz que somos formados pela telenovela. Mas a academia e os críticos da cinefilia têm um enorme preconceito em relação à telenovela, né? Como se fosse algo menor. E aí eu sempre falo para os alunos: 'Vocês acham essas séries maravilhosas? Não conseguem perceber a complexidade do que é uma novela? Do que é o modelo da telenovela brasileira?' Porque, às vezes, fica esse endeusamento das produções gringas, né? E tudo o que fazemos aqui é considerado muito ruim.
E por que isso também acontece? Porque é melodrama, né? O melodrama é tratado como algo menor, e as telenovelas também se baseiam nesse gênero. Mas, com certeza, ainda temos um grande preconceito, que está sendo quebrado aos poucos. Mas fico muito decepcionada quando vejo acadêmicos elogiando excessivamente as séries americanas, enquanto, na academia, as telenovelas são invisibilizadas.
Em meio a essas duas correntes, temos gerações de pessoas que têm seu olhar cinematográfico formado, desde a tenra infância, pelo cinema de fora, consumindo a novela, como você apontou, como um “subformato” do audiovisual. Como atrair esses olhares cunhados pelo que existe fora do cinema brasileiro?
Eu acho que há muitas possibilidades. Temos a telenovela, e precisamos parar de ter preconceito em relação a ela na academia. Estávamos discutindo isso em Tiradentes, essa ideia de formação de público, mas me incomoda essa ideia de formação, como se houvesse uma maneira certa de fazer as coisas. Precisamos pensar numa educação emancipatória e cidadã. Existe uma lei que precisa ser regulamentada, que exige a presença de cinema brasileiro nas escolas, mas, por exemplo, veja: telenovela não. Já começa com uma hierarquia. Então, o que é cinema brasileiro? Estamos agora nessa fase de regulamentação, que precisa ser analisada com muito cuidado para não reafirmar um preconceito.
Mas acho fundamental que comecemos a assistir a filmes brasileiros, ou melhor, obras brasileiras nas escolas, porque isso vai gerar o público do futuro. E é importante que exista uma multiplicidade de cinemas brasileiros, não apenas um tipo de cinema. A França tem isso há séculos – bem, séculos não, mas desde 1945, acho, com a obrigatoriedade de audiovisual francês nas escolas. Outra proposta que discutimos lá foram as salas públicas nas universidades e institutos federais. Houve uma ampliação dos institutos federais. São salas públicas com a possibilidade de uma curadoria e programação diferentes, que não sejam apenas a programação mainstream, para que possamos abrir espaço para outro tipo de curadoria e programação.
Toda indústria de cinema no mundo necessita de políticas públicas para operar, e mesmo aquelas que as aplicam de maneira mais discreta o fazem fortemente. Ao mesmo tempo, muitos dos trabalhadores de cinema hoje em dia só conseguem operar quando conseguem aporte público, precisando articular seus projetos de acordo com os interesses dos órgãos que detêm esse capital. E em retrospecto, a oscilação política ao longo da história brasileira também acarretou um dificuldade de constância da produção e desenvolvimento do audiovisual. Seria correto dizer que a dependência da indústria brasileira parece ser um ponto fraco na constância e desenvolvimento do ciclo audiovisual?
Acho que não, porque quase todos os países do mundo têm isso – não sei se é uma dependência, mas têm programas e políticas de desenvolvimento dos seus cinemas nacionais. Então, acho que isso não é, em si, o problema. O problema é como tem sido feito aqui no Brasil atualmente, porque não estamos construindo nada estruturante. Essa política de editais, que no ministério Gil foi muito reformista, hoje, em 2025, não é mais. Para mim, uma política reformista hoje seria: 'Vamos investir em salas públicas de cinemas universitários e institutos federais.' Vamos pensar em outros elos que se desloquem um pouco dessa lógica de só focar na produção, e que possamos construir uma nova cultura política. Tenho dúvidas se realmente temos uma indústria; estou estudando isso, o que é indústria e o que não é. Porque, a meu ver, se a gente só tem a produção como um elo, não temos uma indústria. A indústria precisa ter formação, circulação, exibição, precisamos preservar essas obras – e não temos nada disso. Temos uma enxurrada de produções. No entanto, acho que podemos ter uma indústria brasileira, mas não nos moldes da indústria norte-americana, que é muito colonizadora, colonial. Que tipo de indústria queremos para o cinema brasileiro?
Dentre todos os debates sobre distribuição, o da regulamentação do streaming parece ser o de maior alcance. O streaming entrou no país e opera sem dar retorno ao Fundo Setorial do Audiovisual, por não pagar as tributações que estavam em voga para a televisão. Produz com mão de obra brasileira projetos sobre os quais não temos agência. Vemos esse debate se espalhando pelo setor audiovisual, mas a ideia da regulamentação parece caminhar a passos muito lentos. Como o setor pode acelerar essa regulamentação?
Na verdade, essa discussão sobre a regulação do streaming começou antes do golpe contra a presidenta Dilma. Aí veio o golpe. E quando você retoma essa questão pós-pandemia, as plataformas já estão gigantes. E o lobby no Congresso é muito forte, muito pesado. Eles estão muito fortalecidos, diferente daquele momento antes do golpe de 2016, por exemplo. O setor é muito dividido, na verdade. E, assim, a regulação vai acontecer, não temos dúvida sobre isso. O problema é que pode haver uma regulação que beneficie essas empresas internacionais, entende? Essa é a grande questão. E aí surge uma divisão. Tem uma galera que vai dizer: 'Vamos regular de qualquer jeito e depois a gente ajusta.' Mas tem outro setor que diz: 'Não, não podemos regular de qualquer forma, porque depois não conseguiremos ajustar.'
O setor está muito dividido. E quem está liderando essa discussão, mais uma vez, é a produção. Se você conversar com o pessoal da preservação, verá que a preservação não está nesse diálogo, o que é muito ruim. A distribuição também está um pouco representada, mas, se você olhar no Congresso, são apenas produtores. Então, você está falando com um elo da cadeia, está falando com um setor, mas e os outros? E a questão da formação? E a questão da circulação? E o que acontece com a preservação? É uma discussão muito concentrada no lugar de poder, porque, de fato, a produção tem mais dinheiro, inclusive mais recursos para ir até Brasília. Então, isso é muito complexo, sabe? E nós, acadêmicos, estamos tentando estudar isso, pensando em como isso atravessa nossos imaginários e a questão da soberania imaginativa. Estamos tentando pensar para além desse pragmatismo imediato.
Na verdade, mesmo dentro da bolha, ainda é um debate muito complicado. A gente tem que o tempo todo reiterar isso, sabe? Não é um debate simples. Todo mundo que pensa em cinema pensa em produção, certo? Então, mesmo dentro do nosso meio, precisamos lembrar constantemente: 'Olha, a gente tem distribuição e circulação aqui.' Temos que lembrar o tempo todo disso. Precisamos sempre lembrar que existem outros modelos possíveis, que não estão contemplados pela política oficial, mas que deveriam estar. Acho que quando as pessoas pensam em cinema, pensam na produção, nos artistas, mas como o filme chega ao público? Quem distribui? Acho que isso não é algo que o senso comum tenha absorvido ainda. Se nem dentro do nosso setor conseguimos formar essa visão, imagina para a sociedade civil.
Você acha que é possível popularizar a pauta da distribuição fora do mundo do audiovisual? Você acha que os profissionais do campo e os ditos “cinéfilos” abordam o tema a contento? Por quê?
Acho que a gente está tentando. Se tivéssemos uma lei que aprovasse a exibição nas escolas, com cineclubes — e temos cineclubes muito politizados — e com a questão das salas públicas, acho que o debate mudaria completamente. A gente teria uma nova cultura, uma politização do setor que exigiria novos léxicos para dar conta disso, novos marcos teóricos. Teríamos que encontrar uma outra fonte para falar sobre isso. Mas, enquanto a gente ficar só falando de market share, retorno comercial, público e salas de cinema... Sabe o que acho? Acho que isso não representa a realidade, entendeu? Isso não é um panorama real.
Você enxerga, em suma, uma necessidade de uma reforma no setor.
Exatamente... É uma questão de estética, de narrativa, de outras arquiteturas produtivas, que não sejam essa arquitetura produtiva que é o guia de elaboração de projeto para edital. Acho que precisamos ter uma nova cultura política no setor como um todo. Isso é algo que, na minha opinião, precisa ser uma construção lenta. E, particularmente, acredito que o Poder Executivo — o Ministério da Cultura, a Ancine, a SAV — deveria ir para o enfrentamento e não ficar tentando equilibrar pires, entende? Agora, nossa opção deve ser essa: não é mais só fazer edital para atender à demanda dos produtores. Acho que eles deveriam chegar com uma ação propositiva, mesmo que desagradasse e fosse impopular, porque a política pública é para a sociedade, né?
Você diz enfrentamento contra o interesse estrangeiro?
Eu acho que é contra o interesse estrangeiro, contra um certo tipo de cinema brasileiro também, que é esse cinema brasileiro padrão. Existe uma pluralidade de cinema brasileiro, né? Acho que é por aí. É um enfrentamento em que a gente diz: damos uma banana para o cinema estrangeiro. É claro que vivemos na globalização, numa geopolítica, e é importante ter uma política de internacionalização. Não adianta ficar mandando gente para estudar fora. É lindo mandar gente para estudar em Cuba, mas nossos alunos aqui não têm bolsa para permanecer na universidade pública, entende? Então, como é que vamos fazer?
Lia Bahia é professora e pesquisadora do departamento de cinema e vídeo da UFF. Realiza investigações sobre economia política do cinema e do audiovisual, com foco em políticas públicas, e integra o Fórum de Tiradentes. Trabalhou na gestão pública com políticas de fomento, formação e difusão e publicou o livro “Discursos, políticas e ações: processos de industrialização do campo cinematográfico brasileiro” entre outros textos.
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