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Foto do escritorLuiz Gustavo

Ação orgânica - Reação mecânica: A memória entre “Anatomia de um Crime” e “Anatomia de uma Queda”


Dentro da história de uma dialética cinematográfica é comum o uso de plano e contraplano para expor a ação e reação entre os personagens e acontecimentos no filme, materializando, através da imagem e som, as consequências do movimento. Dessa forma, a linguagem do filme se comporta como uma máxima, limitando os caminhos imaginários percorridos conscientemente pelo espectador da ação até a reação e potencializando seu lugar como testemunha. Não existem dúvidas sobre a própria estrutura em Anatomia de um Crime, dirigido por Otto Preminger e lançado em 1959. No filme, acompanhamos um advogado, Paul (James Stewart), tentando recuperar seu amor pelo direito ao defender um homem, Frederick (Ben Gazzara), da acusação de assassinato contra o responsável pelo crime sexual cometido contra sua esposa, Laura (Lee Remick). Aqui o crime e a investigação são uma ação orgânica, baseados em reações instantâneas e documentadas dos personagens a vida. Plano e contra plano tornam a linguagem invisível e não permitem dúvidas sobre sua anatomia. Ela é um crime.


Por outro lado, o vencedor da Palma de Ouro de 2023, Anatomia de uma Queda, dirigido por Justine Triet, questiona a sentença de que uma queda seria um crime. Nele acompanhamos as reações de Sandra (Sandra Hüller), uma escritora, que é declarada suspeita de assassinato quando o seu marido é encontrado morto do lado de fora de sua casa. Temos aqui a presença de reações mecânicas entre a suspeita (Sandra) e testemunhas parciais, como seu filho, e nós, como audiência, uma vez que as imagens e sons dessas reações refletem conscientemente e ficcionalizam em seus gestos e palavras a ação da queda. Elas questionam sobre a queda através da dissecção da memória dos personagens, sob a pressão de poder estar dentro da anatomia de um crime.



A ação orgânica em Anatomia de um Crime


Em um momento da trama, o réu Frederick, durante seu julgamento no tribunal, faz ao seu advogado o seguinte questionamento: “Paul, como o júri desconsidera o que já ouviu?”. Essa pergunta é feita em um momento em que o juiz pede para que o júri desconsidere determinadas sentenças do advogado e do promotor. No entanto, para Paul, o júri não esquece o que ouviu. O importante em Anatomia de um Crime não é lembrar do que foi dito, mas sim testemunhar o que foi dito à medida que as imagens do filme se desenvolvem em ações não planejadas, sentidas no calor do momento, enquanto ocorre uma dialética entre verdade e mentira. Vítima e assassino. Imaginação e realidade. Ação e reação. Plano e contraplano.


Dessa forma, nosso lugar como testemunhas de ações ocorre desde o momento em que, para termos conhecimento do crime, precisamos observar o que nos é contado pelo relato dos personagens, já que não vemos a imagem do crime sofrido por Laura, nem o cometido por Paul. Tais relatos são descritivos e criam imagens instantâneas na cabeça do espectador. Somos guiados pelo olhar do advogado que escuta esses relatos e os determina de forma despercebida em um ritmo musical consumido por ele no filme, o Jazz. Esse é muito marcado pela improvisação, que depende do consumo de uma ação instantânea, ou seja, os planos se estabelecem em uma cadência que estabelece um sentido entre a ação e a reação dos seus personagens.



Temos uma mudança de sentido que é estabelecida e limitada a partir da velocidade da montagem. Uma dialética entre os planos que não se preocupa em um porvir e sim em testemunhar um instante. Como a autenticidade dos movimentos do cachorro de Laura em cena, ou, ainda, a agressividade instantânea de Frederick contra o seu colega de cela, que materializa o que, até então, era uma memória imaginária dos expectadores sobre o assassinato cometido. A conclusão do crime se dá a partir da materialização de objetos que só tinham sido citados de maneira detalhista, como a calcinha de Laura perdida na floresta onde aconteceu a violência sexual cometida contra ela. Dessa forma, a testemunha presente na audiência que a encontrou reage às ações orgânicas, improvisadas, de advogado e promotor ao dar forma concreta a ação com a imagem visível do objeto participante da anatomia de um crime.


A reação mecânica em Anatomia de uma Queda


Sob a tela preta inicial do filme, ouvimos Sandra reagir dizendo “O que você quer saber?”. No momento, pensamos que ela está se referindo a nós espectadores, mas ela está em uma entrevista com uma estudante universitária que deseja saber mais sobre o seu processo criativo. Essa consciência acerca do questionamento, presente desde o primeiro frame, faz com que Anatomia de uma Queda seja um filme que utiliza do tempo presente nas reações para refletir sobre suas próprias imagens e sons. Os planos aqui não duram a temporalidade das ações e sim percebem a consciência das reações. Isso pode ser notado com a insistência em mostrar as expressões de Sandra e os gestos do cachorro na casa, enquanto seu marido, Samuel, toca uma versão instrumental da música P.I.M.P, do 50 Cent, em looping no andar superior da casa a fazendo parar a entrevista.


Aqui temos uma presença fantasma, uma vez que, em nenhum momento vemos Samuel. Triet se utiliza do discurso de emanação, elaborado pelo teórico Michel Chion, no qual o diálogo é feito a partir de ruídos para além de palavras, gerando espaços entre a ação e a reação que permitem a ficcionalização da imagem e som pelos espectadores. Somos, junto a Daniel, o filho do casal que ficou cego por conta de um acidente, uma testemunha ao encontrarmos o corpo do pai sangrando e estirado imóvel na neve. Temos acesso à reação do filho e passamos a buscar os motivos da morte através dos planos que demonstram a consequência.


A partir disso, o que importa é como existe um desprendimento do plano com a ação, que gera uma reflexão e consciência sobre diversos elementos, como o espaço da própria casa ao apresentá-la ao advogado, por aquilo estar sendo percebido conscientemente pela primeira vez. Essa percepção consciente se dissemina até os gestos e expressões dos personagens, através da reencenação de imagens e sons feitas pela polícia na casa, ou até mesmo no relato de Sandra sobre suas vivências com Samuel, percebidas em um primeiro plano em zoom que dá conta de capturar suas respirações, olhares e pausas, enquanto ficamos íntimos da construção dessa imagem que é notada conscientemente por ela pela gravação de si no celular para treinar sua postura no tribunal. O júri analisa a queda adicionando imagens e sons da memória documentada que alteram constantemente o sentido de ser ou não a anatomia de um crime a partir da reação dos personagens em cena.



Isso pode ser percebido na cena em que somos apresentados a uma gravação sonora feita por Samuel de uma discussão do casal, um dia antes da morte dele. Esta é a primeira vez que vemos Samuel em movimento na imagem e temos uma instantaneidade da ação e reação deles na discussão, com o diálogo entre plano e contraplano. Essa memória apresentada no filme não só reverbera sua própria história, como também a de Anatomia de um Crime por estabelecer através da montagem subordinada a uma ação, a sugestão de que a queda seria um crime cometido por Sandra. No entanto, diferentemente de do filme de Preminger, a imagem corta e não explora a fisicalidade da briga. Ouvimos os sons dela, enquanto acompanhamos as reações de Sandra sobre algo já vivido.


Essas vivências compartilhadas e testemunhadas no tribunal geram uma memória em Daniel sobre o cachorro ingerir remédios do pai que mostrariam tendências suicidas dele e explicariam a “queda”. Isso o faz agir em busca de uma reação mecânica do seu cachorro dando remédios para ele. O cachorro tem uma série de reações corporais iguais às presentes em sua memória. Ao relatar isso no tribunal, o animal é percebido para além das suas ações instantâneas e Daniel dubla confissões do pai do seu ponto de vista imagético, alterando o sentido das imagens. Elas não estão interessadas na materialização de um objeto da verdade da ação, como em Anatomia de um Crime, mas sim, em explorar as possibilidades de ficção contidas na reação da anatomia de uma queda.

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