No momento em que nos colocamos no lugar de espectador, em qualquer espetáculo artístico que seja, entramos em contato com sensações tão sublimes e potentes quanto as que vivenciamos em nosso cotidiano. O olhar de quem é representado na tela nos seduz, seu corpo e o seu movimento nos envolve, nos toca e exige quase que imediatamente uma resposta. Quase como um voyeur — aquele que observa à sua distância —, o espectador é submetido às tentações da imagem, à tensão de olhares e ao choque dos corpos da diegese fílmica.
Partindo dessa sensibilidade, encontramos claro reflexo das marcas profundas deixadas pelo olhar e pelo corpo em Close, dirigido e co-roteirizado por Lukas Dhont, cineasta e roteirista belga. O longa nos apresenta as breves vivências do cotidiano de Leo e Remi, dois garotos no auge da sua infância, os quais serão posteriormente abalados por mudanças intensas na lógica interna de sua amizade e na lógica externa da relação com os pais e com a comunidade da qual fazem parte. A imagem que preza pela doçura e delicadeza no ato de brincar e fruir da infância será substituída por outra intranquila, rígida e, sobretudo, cruel. Essa riqueza fílmica orquestrada por Dhont se encontra nos mínimos detalhes da diegese, desde o simples fascínio ou tristeza profunda, esboçado no olhar direcionado ao outro, à singeleza ou tensão de um toque.
I
Em uma das primeiras cenas do longa, Leo visita Remi em sua casa. Este ensaia uma peça musical com seu clarinete e Leo, recolhido na cama do amigo, observa-o com uma admiração contida. Mais adiante, a relação dos dois será potencializada quando Leo se dispõe a fazer um desenho de Remi — desenho esse revelado como uma brincadeira, no final das contas. Aqui, a câmera, por meio do recurso da montagem, parece deslocar o seu interesse entre o rosto e parte do corpo dos dois garotos. Esse efeito de aproximação dos corpos será compreendido por Bélla Balazs — importante crítico e teórico do cinema — como close-up. Para ele, essa aproximação não apenas revela e sublima as expressões e reverberações dos gestos, como também deixam à mostra as marcas deixadas nos corpos que transparecem na mise en scène. No jogo de admiração, contenção e contentamento expressos no olhar, performa o espectador um processo de identificação e alteridade difusa. O jogo de planos também nos convida a, propositalmente divididos, compreender diferentes lados, percepções e, portanto, subjetividades dos personagens.
II
Também no simples ato de contar uma história para dormir reside a expressão máxima de uma amizade. Numa cena posterior, Remi está inquieto, e Leo resolve contar uma breve história para ajudá-lo a cair no sono. Dessa vez, entretanto, o jogo de planos efetuado pela câmera nos revela a potência dialógica que há entre os dois garotos. Há algo de puro e precioso na maneira como olham reciprocamente, na forma como se ouvem atentamente e na maneira como se tocam inocentemente durante o sono profundo. Mais do que compreender a lógica da relação dos garotos, somos impulsionados pela lógica que cada um toma para si. Esses pequenos indivíduos ganham vida, e com eles o que sentem e o que dizem.
III
Além da disposição da câmera nesses múltiplos planos em sequência, outros elementos técnicos colaboram com o realce do close-up e da emoção que evocam. As sequências que outrora eram iluminadas e realçadas por uma paleta de cores vermelha e amarela — cores que recordam a intensidade e a infância — agora são planos tomados por um aspecto noturno, pela sombra e pela soturna melancolia. A câmera parece castigar-nos ao nos submeter a uma progressão lenta. Em outras palavras, aproxima-se vagarosamente ora da mãe de Remi, ora de Leo. É assim que somos conduzidos à essência da dor que carregam.
Pensar o cinema é pensar, portanto, em um regime de imagem que nos atinge e que nos perpassa. Essa imagem nos quer perto e nos afasta. Ela cumpre com o papel máximo de provocar nossa percepção, de nos perturbar, de nos castigar, de nos seduzir. Ainda assim, apesar de deixarmos a sala de cinema aparentemente intactos, as marcas de Close e de tantos espetáculos fílmicos continuam ali — na descoberta do toque, num novo regime do olhar ou na memória daqueles imortalizados pela experiência do cinema.
O filme está disponível na Mubi Brasil.
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