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Foto do escritorDavi Krasilchik

"Armadilha": Aquele que mal vê

Imagem do filme Armadilha. (Foto: Warner Bros. Pictures/Divulgação.)

Embora estejam na fileira 44, com uma excelente visão do show, direto da pista, Cooper (Josh Hartnett) e Riley (Ariel Donoghue) se esforçam para enxergar a cantora Lady Raven. O olhar míope é a principal ferramenta de Armadilha – ele impede de se perceber que o inimigo está logo ao nosso lado.


O novo filme de M. Night Shyamalan acompanha um serial killer conhecido como “O Açougueiro”, que leva a filha ao show de uma estrela pop. Os holofotes destacam as coreografias no palco, os telões desenham o figurino brilhante da artista, e os fãs vibram a cada música. A celebração acoberta um perigoso segredo: tudo não passa de um plano para capturá-lo.


Subvertendo a sina de seu diretor, reconhecido por suas reviravoltas mirabolantes – amadas por alguns, odiadas por outros –, o longa não tarda em entregar a verdadeira identidade do pai protetor. Forma-se uma aliança dúbia, entre personagem e espectador, logo nos primeiros minutos. A visão de Cooper tece um espaço opressivo, onde suas angústias o destacam em meio à massa de devotos, e cada ângulo sugere não haver escapatória.

Imagem do filme Armadilha. (Foto: Warner Bros. Pictures/Divulgação.)

As lanternas que se acendem em determinada canção convertem a arena em uma espécie de purgatório: são fantasmas de um inconsciente atormentado, isolado em sua conduta fragmentada. Espiamos aquele que espia por um escape, depositando nele a esperança, talvez, de redenção. Se Riley acredita cegamente em uma figura que não consegue ver direito, porque faríamos diferente com o nosso protagonista?


Somos peças de um quebra-cabeças óbvio, onde cada coincidência – ou conveniência, para alguns – parece estar à serviço do seu predador. Apesar de evidente, o magnetismo desse jogo convence justamente por sugerir uma espécie de fé naquela figura sinuosa. A fé que uma criança deposita em seus criadores, por mais transparente que seja o livro de pregação.

Imagem do filme Armadilha. (Foto: Warner Bros. Pictures/Divulgação.)

Os zenitais do fotógrafo Sayombhu Mukdeeprom imprimem uma fuga para os limites do quadro, decifrando a geometria dos corredores por entre os quais Cooper se destaca. Mais que assimilar os seus anseios, a câmera estabelece a dinâmica que o protagonista mantém com os seus espectadores. Ele implora pela atenção de suas testemunhas, para que possa desaparecer frente a elas.


É interessante comparar essa lógica com a aproximação de Riley em relação ao palco. Embora se entrelace com os planos de seu pai para escapar ileso, a sua crença ultrapassa as evidências de um esgotamento iconográfico. Shyamalan filma danças por através das coxias, cortinas se intercalam com a visão da performance durante o plano. Os refletores se revelam e o diretor decompõe seu teatro de máscaras. Ou melhor, escancara os limites das relações de idolatria sem que os fiéis deixem de orar.

Imagem do filme Armadilha. (Foto: Warner Bros. Pictures/Divulgação.)

Os filmes do realizador sempre trabalham com níveis além do que se entende por “natural”. Embora não seja novo em sua filmografia – basta relembrar a famosa cena da tevê com o “alienígena brasileiro” de Sinais (2002) –, essa extrapolação acontece pela reprodução das telas, que intermedeiam a nossa relação com ambiente e personagens. Dos celulares aos telões de LED, reproduções e reproduções são centralizadas pela mesma lente, brincando com a coexistência entre versões diversas de uma mesma figura.


Quando Cooper testemunha a realização de um dos sonhos da filha, a direção nos provoca com o encontro entre a sua vida pública e privada. Ao colocá-lo, lado a lado, com as televisões que transmitem o show de Lady Raven, Shyamalan tenta comprimir essa figura central e seus possíveis duplos. Essa dualidade, inclusive, é salientada incontáveis vezes pela parceria entre ele e Mukdeeprom. 


O reflexo dos policiais se sobrepõe a uma conversa entre pai e filha. A câmera desliza em busca do chão, buscando raízes, signos que salientem esse descompasso do protagonista. Os sorrisos assustadores de Hartnett são expulsos, em certos momentos, para a lateral do quadro, reforçando a sua incompletude. São recursos gráficos bastante claros, mas cuja obviedade aponta novamente para a inevitável verdade que teimamos em não reconhecer. O choque entre o pai perfeito e o assassino desenfreado está claro. Mas as aparências tentam permanecer. O show deve continuar.


A desnaturalização também se encontra em Josh Hartnett, talvez uma das melhores parcerias na carreira de um cineasta que já trabalhou com vários nomes consolidados. Seu personagem demonstra alguma dificuldade em traduzir normalidade, incorporando a verborragia explícita, nada sutil – o Calcanhar de Aquiles de quem o dirige, segundo alguns. Em seu espiralar de decisões racionalmente imprudentes, no atravessar das muitas coincidências que facilitam a sobrevivência, e pela facilidade de se manter no controle da situação, o ator se entrega à farsa.

Imagem do filme Armadilha. (Foto: Warner Bros. Pictures/Divulgação.)

Quanto mais o filme se entrega a essas resoluções práticas, aos objetos que guiam a estrutura narrativa e se torna progressivamente palpável, mais abstrato se torna aquele que nos guia através do olhar. Surge uma lógica quase religiosa de ações e recompensas, que, nesse universo farsesco, permite um ordenamento incompatível com a realidade, induzindo novamente ao questionamento redentor que nos mantém torcendo pela personagem.


Temos em Cooper uma espécie de mago, capaz de convencer qualquer um, até determinado ponto, de sua capacidade em usurpar outras identidades. Se em uma escala realista seus disfarces jamais se sustentariam, essa série de licenças poéticas acabam autorizando certas reações. É a liberdade que permite Riley amar o pai incondicionalmente. A liberdade que leva uma criança a sonhar com a sua celebridade favorita visitando o seu lar. A liberdade que nos condiciona a crer na existência de um motivo, quiçá moral, para a associação entre o público e um serial killer.


Quando o filme opta por uma mudança específica de perspectiva, testemunhamos o colapso dessa visualização. A troca de lentes derruba a fina parede que nos separava do homem de numerosas faces e distante, embora estivéssemos enxergando através dos seus olhos. Permanece a apreensão de estarmos nos aproximando de alguma possível resolução. A sensação se mantém por prezar por quem agora estamos vinculados, ou aguardamos pelo milagre improvável?


Para “o homem dos plot twists”, talvez a melhor saída seja se esquivar dessa responsabilidade falsa logo em seus primeiros minutos. Shyamalan encontra uma forma de testar novamente a fé de seus discípulos, oscilando entre o exercício de gênero pragmático e jogos de idolatria. Somos aprisionados em uma terra de falsos deuses, onde por mais eminentes sejam as suas falências, resistimos em reconhecer esses limites. 


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