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Algumas perguntas sobre "O Auto da Compadecida 2"

Matheus Nachtergaele e Selton Mello em O Auto da Compadecida 2 | Foto: Divulgação/ Laura Campanella

Eis uma palavra que será bastante mencionada neste texto: autenticidade. A escolha não se dá por mera banalidade, mas sim por esta ser dita algumas vezes em O Auto da Compadecida 2, filme de Guel Arraes e Flávia Lacerda, que é a continuação direta do filme que se tornou um clássico tanto na sua versão televisiva quanto no corte cinematográfico. Contudo, não sejamos ingênuos: a autenticidade não é algo que esperamos no cinema, arte esta que não é a representação do real, visto que ela inevitavelmente a filtra. Possivelmente, nenhuma história contada será inédita, diferenciando-se apenas por suas formas de abordagem. O ponto desse texto, então, não é discorrer acerca da natureza imagética de sua linguagem, mas apontar questões que parecem sintomáticas do contemporâneo.


Continuar uma história cujas linhas do roteiro já estão na embocadura da boa parte da população é um risco, assim como é o reflexo do desejo de reencontrar personagens queridos. Logo, num período cinematográfico em que as ideias originais parecem se esgotar, as continuações se tornam uma moeda de troca interessante: retém-se o financeiro, cria-se um produto que se deseja perene. É então que surge a primeira dúvida: como contar uma nova história a partir do material conhecido? Arraes e equipe optam pelo caminho mais fácil: a paráfrase. Como um copista, o roteiro parte do mesmo início para o mesmo fim, modificando algumas situações, inserindo outras oportunas, mas deixando o material com um aspecto nostálgico – seja por rever João Grilo (Matheus Nachtergaele), Chicó (Selton Mello), Rosinha (Virgínia Cavendish) ou pelos momentos que frases conhecidas são evocadas – que poderia ser seu ponto forte, se não fosse, justamente, pela falta de autenticidade.


Repito: nada é original ao cerne, mas o que se observa em O Auto da Compadecida 2 é que a obra parece mais versada na produção lucrativa que no saudosismo. Talvez esse argumento seja óbvio – ora, o desejo por uma boa bilheteria não é errado – mas quando as risadas provocadas vêm exatamente na piada parafraseada, fica evidente a fraqueza do filme em gerar novas situações engraçadas. E não faltam oportunidades para isso: a entrada de personagens como Clarabela (Fabíula Nascimento), Arlindo (Eduardo Sterblitch) e Antonio do Amor (Luís Miranda) poderiam trazer o respiro de novidade para a narrativa, mas apesar das boas interpretações dos atores, eles estão servindo quase da mesma forma que Dora (Denise Fraga), Eurico (Diogo Vilela) e um João Grilo com sotaque carioca. Em determinado momento, por exemplo, sem mais serventia à trama, suas narrativas são encerradas para o foco volta-se à relação de amizade do “Grilo mais amarelo do Brasil” e de Chicó. A sensação que fica é que os fios narrativos desses personagens foram criados para serem desenvolvidos na série para televisão, fazendo o caminho inverso do primeiro filme.

Matheus Nachtergaele em "O Auto da Compadecida 2" | Foto: Divulgação/ H2O Filmes

Ou seja, se um filme não basta em si mesmo, sua realização torna-se meramente um produto entregue – um presente de Natal. Mas o leitor poderia argumentar que o filme questiona a si mesmo como continuação, utilizando até mesmo a intensificação dos elementos teatrais como ferramenta. Estaria a equipe, então, questionando a autenticidade do que é apresentado? O cenário meticulosamente construído dentro de estúdios, a câmera que, como um pássaro, passeia por entre os espaços, a mescla de animação com elementos reais e a iluminação impecável, tudo isso compõe uma visualidade refinada, tecnicamente irrepreensível, mas também vazia. Esses elementos são apenas artifícios que mascaram a fragilidade da proposta narrativa. Não me refiro aqui a uma necessidade de aprofundar-se, de provocar reflexão ou algo do tipo – o filme nunca se propôs a tal – mas de brincar com a própria metalinguagem.


O problema é que a exploração do artificialismo, embora interessante em teoria, não leva a lugar algum. Ela não se desvia da superfície. O filme nunca realmente se arrisca, preferindo se refugiar em um jogo de aparências. E quando a ideia das eleições surge no miolo do filme, o ponto mais interessante da escrita, evocando bem Ariano Suassuna – ela logo se esvai, como os personagens envolvidos. Ao final, quando chega o clímax – que se diferencia apenas pela opção dos atores – a sensação que fica é de que acompanhamos a mesma história contada por um outro escritor, também competente, mas sem a mesma fascinação aos personagens, ainda que Nachtergaele e Mello parecem os mesmos que vinte anos. Então, é óbvio que a autenticidade não precisa necessariamente ser buscada por um filme, mas quando lhe falta essa característica, de forma tão evidente, não é possível ignorar.


O Auto da Compadecida 2 não é inédito nessas questões levantadas – o cinema hollywoodiano já vem lidando com isso há bastante tempo – mas lidar com um material clássico – seja em forma de literatura, seja nas suas adaptações – exige certa coragem para avançar em novos caminhos. Se Guel Arraes tentou se arriscar em Grande Sertão, ainda que o resultado não seja robusto, agora ele prefere seguir no conforto. Nesse aspecto, é sempre mais interessante observar o risco fora da linha que a caligrafia bem escrita num caderno. Deixo aqui um último questionamento: o que se ganha ao revisitar um universo com o intuito de perpetuá-lo se, no fim das contas, o filme se limita a reproduzir os mesmos sentimentos que já conhecemos?


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