Em uma bandeja, pão e leite. Delia (Paola Cortellesi) caminha para o quarto do seu sogro para servi-lo. Ao desejar bom dia, prontamente Dom Ottorino (Giorgio Colangeli) pega um calendário mecânico nas mãos e troca a data para a atual. No ato final da obra, seu sogro morre. E ao se despedir da vida, naquele mesmo quarto, não é Dom Ottorino que muda a data no calendário, mas a própria Delia o pega nas mãos e atualiza. A sequência, tendo o calendário como dispositivo, conclui que um novo dia surge para a protagonista tomar sua decisão tão pensada e planejada ao longo da obra: mudar seu destino. O calendário, objeto milenar de mudança de tempo, se apresenta no filme como um símbolo de quebra entre passado e futuro, entre um presente de mudanças, entre repressão e liberdade.
Em um cenário de uma Roma pós-guerra dos anos 1940, Ainda Temos o Amanhã (C'è ancora domani), dirigido por Paola Cortellesi, apresenta uma narrativa tocante e complexa que explora as lutas internas e externas de uma mulher determinada a desafiar as normas patriarcais. Este drama com toques de comédia revela a vida de Delia, que busca sua própria identidade em um mundo dominado por expectativas tradicionais.
Delia vive em um ambiente opressor, sendo mãe de três filhos e esposa de Ivano (Valerio Mastandrea), um homem autoritário que a submete a constantes humilhações e violência. No entanto, sua vida começa a mudar quando ela recebe uma carta misteriosa, que a inspira a questionar seu papel dentro do núcleo familiar e da sociedade. A família está se preparando para o noivado da filha mais velha, Marcella (Romana Maggiora Vergano), que vê no casamento uma saída para uma vida melhor. Esse evento desencadeia uma série de reflexões e decisões que levam Delia a imaginar um futuro diferente, possivelmente mais livre e autônomo.
“Nós seguramos nossos votos como cartas de amor”, é a frase de Anna Garofalo que nos é apresentada no final do filme. A frase explica e remonta a sensação de ápice que é imposta no decorrer da obra, por cenas de contato entre a protagonista e sua paixão de infância, Nino (Vinicio Marchiori); e em seguida o recebimento de uma carta misteriosa. A junção dessas sequências nos leva à tentativa de questionar se Delia se prepara para fugir com ele, que confessa o desejo de ir para outra região em busca de melhores condições de vida. Mas na verdade, o ato final nos revela que aquela carta julgada de amor, era um bilhete de voto. Ou seja, o que Delia fará como primeiro passo de liberdade é exercer seu direito democrático. A sua “fuga” parte de um ato político.
Paola Cortellesi, em seu primeiro longa-metragem, demonstra habilidade em mesclar elementos do neorrealismo italiano com a leveza da commedia all’italiana. Filmado em preto e branco, o filme evoca uma estética nostálgica que remete aos clássicos do cinema italiano, enquanto aborda temas contemporâneos com uma sensibilidade moderna.
A habilidade de Cortellesi em capturar a complexidade das interações humanas é evidente em suas escolhas de direção. O uso de planos fixos e transições sutis destaca o contraste entre os papéis tradicionais de gênero, criando um olhar objetivo sobre as vivências dos personagens. Nas cenas protagonizadas por Delia e Ivano é perceptível essa escolha técnica, tanto quando presenciamos os atos de violência, como os momentos que ele se impõe como chefe da família, sentado à mesa enquanto é servido pela mulher. Essas situações ao longo do filme são apresentadas com ângulos em plongée da visão de Ivano sobre Delia; ainda em movimentos panorâmicos entre os personagens, deixando claro como a câmera foi muitas vezes posicionada de forma a enfatizar a tensão e o desequilíbrio de poder dentro da família. Cortellesi utiliza essas funções da fotografia para imprimir uma representação simbólica, permitindo que a imaginação do espectador preencha os espaços deixados pela narrativa visual.
O filme aborda a violência doméstica e os direitos femininos de maneira realista. Delia é uma mulher que personifica a resistência silenciosa, tentando encontrar momentos de alegria e solidariedade com sua amiga Marisa (Emanuela Fanelli), enquanto navega pelas expectativas de sua sociedade. A violência contra a protagonista é retratada de maneira quase coreográfica, por vezes encenada como dança, “a dança do poder sobre a dor”, uma escolha estilística notável de Cortellesi, o que levanta questões sobre a estetização do sofrimento e o impacto emocional da violência doméstica. Embora algumas cenas de violência sejam estilizadas, essa abordagem serve para destacar a banalidade e a onipresença da violência na vida de Delia, forçando o público a refletir sobre o horror invisível que muitas mulheres enfrentam. Essa estetização provoca uma reação mista, gerando um debate sobre a forma mais eficaz de retratar a violência sem diminuir seu impacto.
Ainda Temos o Amanhã utiliza o contexto histórico para realçar a luta das mulheres por direitos e reconhecimento. A obra capta o espírito de um tempo em que as mulheres italianas começaram a conquistar direitos civis, como o voto, após anos de opressão. O filme não se limita a contar uma história individual, mas amplia a discussão para outras questões sociais, como o sexismo e o machismo estrutural. O longa-metragem, portanto, é uma poderosa homenagem às mulheres que, mesmo sem perceberem, desempenharam papéis fundamentais na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Em uma mistura de comédia e drama, o filme oferece uma reflexão profunda sobre os desafios e as esperanças de uma mulher em busca de sua própria identidade em um mundo em transformação.
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