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Foto do escritorLuiza Neves

Janela de Cinema 2023 | A terra marcada com sangue em "Os Colonos"


Um homem lava suas mãos cobertas de sangue em um balde cheio d'água, demoradamente. É noite, e a luz provém das chamas de uma fogueira – tudo isso enquadrado em um aspecto 4:3. Estamos no sul do Chile, e os personagens principais do drama Os Colonos, dirigido por Felipe Gálvez Haberle, acabam de tomar um rumo brusco na história.


Dividido em capítulos, o longa introduz-se com as paisagens idílicas e vastas das terras chilenas em 1901, na cadência inicial de um western. José Menéndez (Alfredo Castro), dono de tudo que o olho ali alcança, determina que o soldado britânico MacLennan (Mark Stanley) vá numa expedição para delimitar sua propriedade e forjar uma rota até o Oceano Atlântico. Acompanhado do mestiço Segundo (Camilo Arancibia) e de um mercenário americano, Bill (Benjamin Westfall), os três montam em seus cavalos e partem rumo à laboriosa jornada.


A elucidação dos horrores derivados de um processo de colonização é, certamente, difícil de retratar. Aqui, fugindo de traços didáticos, Haberle escolhe demonstrar uma brutalidade que se dá, antes de tudo, no olhar estabelecido sobre Segundo, de maneira quase claustrofóbica. O pouco que este expressa em falas transparece em suas expressões, nos olhos arregalados de quem não demonstra certeza quanto ao lado da narrativa em que se encaixa. O fio que tece tal questão acerca da ideia de pertencimento inicia então suas amarrações. É uma primeira vitória sutil da figura que oprime: diante da angústia de perceber que algo não está certo, o silêncio e a impotência demonstram sua dominância em cima do oprimido.



O fato da obra ser belissimamente fotografada não a torna menos dura. As cenas de violência carregam agonia naquilo que ofuscam, nos gritos que ecoam em meio a uma forte neblina. Depois, uma contagem de corpos, uma mensagem cruel; de cada morto extrai-se uma orelha, como símbolo de conquista. Que o genocídio é uma das pontes colonizatórias é sabido, mas a situação agrava-se ao percebermos que é um ciclo fechado que ocorre na tela, uma expedição transformada em missão de extermínio. Assim como Segundo, nos encontramos sufocados dentro de uma mata, forçados a assistir à barbárie, com esperanças ingênuas de receber um pouco de piedade.


O respiro não vem, nem o senso de justiça. Após a continuação da viagem, um lapso temporal muda a estrutura da narrativa. Neste ponto, o filme torna-se um pouco mais explícito em seus diálogos, um dos poucos momentos em que o roteiro parece não ser tão capaz de sustentar-se para explicar as consequências de ações demonstradas até então. MacLennan, cuja imagem desde o início é dotada de mistério, torna-se alguém mítico, mas a ausência prévia de construção, nesse caso, deixa um gosto ruim na boca. Em suas duas horas de duração, eis o capítulo que parecia pedir mais.



Ainda assim, é potente o que Haberle consegue encaixar nas entrelinhas – o entendimento de que, para manter o discurso dominante, é preciso apropriar-se de narrativas. Quando assassinato passa a ser enxergado como algo por demais desumano, é preciso mudar o tom. A ideia civilizatória torna-se a de integração, um projeto de nação unificada que deriva de um apagamento cultural; não tiram a vida, mas expurgam o direito à cultura própria.


O fio estendido até aqui dá o nó final em uma forca, penosa em sua vagarosidade e arrebatadora no uso da forma cinematográfica. O uso do close-up no cinema, quando bem executado, parece conseguir carregar uma obra inteira nas costas. Aqui, no que se demora, eleva nossas expectativas, e cada segundo de aproximação faz-nos perceber que a respiração se prende. Queremos entender o próximo ímpeto, porém o intuito nunca foi o de conceder desejos a quem assiste.


A personagem Lady Macbeth, do dramaturgo William Shakespeare, lavava o sangue de suas mãos de forma obsessiva, sem que nunca sentisse estarem limpas. Em Os Colonos, é na lã branca que a mancha de sangue perdura. É, em si, uma premissa poderosa fazer o uso da arte para resgatar histórias e evitar que sejam esquecidas, principalmente quando se trata de um apagamento étnico. No longa em questão, para além de tal premissa, há a maestria da boa execução. A história incomoda e, sobretudo, acomoda-se na mente. Consegue chacoalhar-nos para algo que precisa ressoar num grito mais alto. Parece um tempo distante. Não é.


Esta crítica faz parte da cobertura do XIV Janela Internacional de Cinema de Recife.


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