Num dia comum, sem muita pompa, mergulhamos em uma suposta rotina. Não há mais o eco alegre das risadas escolares, dos grupos de amigos inseparáveis e das noites sem sono. Neste "cotidiano", nos tornamos domesticados, despertando cedo, tomando banho e saindo para as atividades diárias. Quando conseguimos desfrutar de uma refeição tranquila ou acordamos sem pressa, é uma felicidade singular, como se estivéssemos imersos em um filme ou novela da Globo, onde a comida e os momentos de interação transbordam na mesa. Na rotina, muitas vezes estamos apenas sobrevivendo, reservando a verdadeira vida para os finais de semana, onde uma cerveja com amigos parece ser suficiente.
Em O dia que Te Conheci, obra dirigida por André Novais, o personagem Zeca, interpretado por Renato Novaes, personifica um homem aprisionado por essa monotonia cotidiana. Sua existência não se resume a trabalhar cinco vezes por semana; ele precisa acordar 2h30 antes do expediente para pegar um ônibus que, por sua vez, leva 1h30 de trajeto. Na noite anterior, ele suplica para um amigo acordá-lo, chegando ao ponto de dizer que "pode jogar até água em mim". Zeca, como muitos brasileiros, não desfruta da rotina; ele simplesmente interage com a manutenção do seu corpo, que proclama descanso. No entanto, a câmera de André Novais não se limita a retratar essa realidade de maneira melodramática, como visto em outros filmes – por exemplo, Bom Comportamento (2017), dirigido pelos irmãos Safdie. Sua estética se volta para o estático, capturando os momentos de respiração em meio ao sufocamento urbano dos corpos dos personagens.
Apesar das mensagens de descontentamento expressas pelo protagonista ao interagir com o mundo que o cerca, O Dia que Te Conheci adota uma abordagem voltada para o gênero de comédia romântica. As situações em que Zeca se envolve têm uma lógica subjacente, mas, ao mesmo tempo, há um excesso de pequenos acontecimentos que proporcionam um humor cativante. Um exemplo ocorre quando o ônibus quebra no meio do caminho. Em vez de esperar pacientemente, Zeca engaja em uma conversa com outra pessoa e decide atravessar a passarela para saborear um pastel. Ele aguarda ansiosamente por 20 minutos pela feitura do lanche, temendo que o ônibus possa ter chegado antes. Num momento de desespero, quando percebe que pode perder o transporte, Zeca corre em disparada, e a câmera registra seus passos largos, ao lado do outro personagem, em plano aberto. Ambos seguram seus pastéis e, com um zoom quase inorgânico, revela-se, de forma sutil, que o mundo é muito maior que Zeca em todos os sentidos.
Quando ele conhece sua possível parceira, Luisa (Grace Passô), eles exibem uma química natural. Apesar de Luisa não conseguir articular uma conversa interativa sobre a demissão de Zeca, o protagonista a cativa pela sua simplicidade. Mesmo que nunca tenham se cruzado no local de trabalho, compartilham diversas coincidências, inicialmente relacionadas às suas experiências adversas em ambientes periféricos, mas que logo se estendem a outros territórios.
Após Luisa entregar os motivos da demissão de Zeca – como, por exemplo, suas faltas cotidianas, seu jeito preguiçoso e seus constantes atrasos – , este tem um respiro na rotina e interage com outra personagem, a mãe de uma das alunas. O enquadramento permanece constante, mostrando Zeca no canto de uma parede repleta de representações não-realistas de personalidades negras. Apoiado quase como parte de um quadro urbano, Zeca conversa com a mulher; mas, ao mesmo tempo, esse diálogo, embora breve, é repetitivo. Parece que a vida de Zeca está presa em um ciclo constante nos ‘’microcenários’’ que o cercam. Exceto por um detalhe: a suposta carona de Luisa, quem deu o aviso de sua demissão.
Ainda bastante reservados, encontram-se dentro do carro. Inicialmente, o veículo assume a forma de uma espécie de prisão, deixando os personagens desconfortáveis com a presença um do outro. Ambos são representados como caricaturas, posicionadas na defensiva e ainda se adaptando à ideia de compartilhar essa clausura, visualizada em seus pequenos gestos. Com o acréscimo do trânsito, o aprisionamento adquire uma nova dimensão. Buscando quebrar o gelo dessa desconexão e silêncio, Luisa inicia uma conversa sobre fofocas da escola, e eles começam a notar a escassez de pessoas negras naquele ambiente, bem como a distância de seus locais de moradia em relação ao centro da Região Metropolitana.
Zeca, barbudo e com uma aura meio infantil, partilha informações sobre sua condição de saúde, revelando uma nova faceta; anteriormente considerado desleixado, ele, na verdade está travando uma batalha contra seus próprios pensamentos. A câmera assume uma posição nas costas dos personagens, enquanto um chroma key envolve o vidro do carro, criando a sensação de compartilharem a mesma "cela". O fato de não visualizarmos claramente seus rostos (como em um close-up) não impede que notemos a intensidade de suas dores. A voz do ator transmite um cansaço evidente, assim como a postura de sua cabeça, que parece constantemente inclinada para o chão.
Os momentos mais impactantes ocorrem quando os dois se encontram na casa de Zeca, supostamente para discutir sobre a receita do seu remédio. Nesses instantes, suas ações tornam-se mais espontâneas, como se pudéssemos finalmente testemunhar suas verdadeiras personalidades. Essa liberdade de movimentos é acompanhada por uma calmaria, dissipando a tensão que antes era necessária para expressar seus sentimentos, como se o peso do amanhã tivesse diminuído. Sentados, compartilhando cigarros e trocando beijos, eles reconhecem que têm mais em comum do que apenas suas tragédias individuais.
Quando Zeca sai para a padaria no dia seguinte, após a noite com Luisa, percebemos uma postura diferente, uma transformação em sua essência. Pode ter sido resultado da dose do remédio ou da presença da moça – mas, talvez, sua rotina ainda não mude, e a segunda-feira continue como sempre. No entanto, ao final do filme, ele parece ter desenvolvido um apreço pela ideia do amanhã. Às vezes, pedir, nos primeiros raios de sol do dia, alguns quilos de mortadela, presunto e pães, significa outra coisa.
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