“O poder sobre a especiaria a tudo domina”
Em seus primeiros momentos, são proferidas palavras na tonalidade estridente do canto Sardaukar, cuja potência ecoa de forma voraz por quase três horas de duração. Essa breve “epígrafe”, ao abrir o filme, remonta ao poder da especiaria e como esta, sob a forma da essência vital e política do universo, espiritual para o povo do deserto, controla, de forma consciente ou não, a conduta e as ações de todo um império. Em um novo ato de uma história espetacular, somos conduzidos de volta ao planeta desértico e à trama da especiaria. Entretanto, vale destacar como, na transição entre o primeiro e o segundo longa, este crava o dever de estabelecer distanciamentos e aproximações, em diversos aspectos, com o seu antecessor.
Antes um épico em construção, o novo ato narrativo de Duna rompe com o próprio construto que havia sido meticulosamente elaborado e atinge o ápice da ficção espacial, ao confrontar política, espiritualismo e a própria essência da existência. A rigor, somos apresentados a um épico no sentido completo do termo: ao realçar não apenas a riqueza do plano e da fotografia, como também a generosidade diegética, o longa demonstra uma engenhosa riqueza estética e narrativa. Examinaremos, portanto, de que forma Villeneuve arrisca-se com o plano cinematográfico e a construção de uma narrativa que, por meio da organização de efeitos visuais e sonoros, da construção de personagem e roteiro, orquestra um espetáculo formidável e que se encaixa plenamente nas qualidades de uma “ópera espacial”.
I
O termo “ópera espacial” surge na literatura, em meados do século passado, e é utilizado para designar qualquer obra cujo intento seja explorar, de forma ampla e grandiosa, as aventuras no espaço sideral. Os romances de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e do próprio Frank Herbert – autor dos romances de Duna – evidenciam como o gênero se consolidou no espaço literário e, posteriormente, foi reafirmado pela experiência do cinema, como em 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick. Mais do que explorar visualmente novos mundos e locais descobertos no espaço, essas obras ampliam e dinamizam a experiência da aventura pela imagem. Essas novas histórias, assim, ganham emoção e profundidade na relação dos personagens e dos eventos narrativos que se desencadeiam, meticulosamente enredados na teia do melodrama.
Ao revisitar o romance de Frank Herbert e construir uma adaptação em dois longas-metragens, Denis Villeneuve considera os elementos necessários para construir, na forma cinematográfica, uma realização sublime com o gênero. Diferente do primeiro longa, no qual boa parte das escolhas estéticas são feitas com o objetivo de elaborar, na mise-èn-scene, um apelo visual e sonoro atraentes, aqui elas são utilizadas a favor de um propósito narrativo excepcionalmente maior. A promessa de que Paul Atreides seria o Kwisatz Haderach – o escolhido para levar os fremen ao paraíso e à glória –, por exemplo, ressoa de forma absurda em momentos pontuais do longa. Quando o garoto monta, pela primeira vez, um verme da areia, os guerreiros os observam animados e jubilosos, enquanto Stilgar (Javier Bardem) o contempla atônito, dominado pela crença em um momento que remonta claramente à representação do fanatismo religioso que se eleva em larga escala pelas comunidades do povo do deserto. Interessantemente, irradia dessa crença no profeta, na sacralidade da água do planeta e no “poder do deserto” o perigo dessa adoração.
A imagem, em toda sua potencialidade, também nos permite transitar entre a perspectiva das casas maiores e suas intenções perigosas na trama de Arrakis. Vislumbramos pela primeira vez os integrantes da casa Corrino – o imperador Shaddam IV (Christopher Walken) e a princesa Irulan (Florence Pugh) em sua posição de privilégio e condução, por meio da aliança com as irmãs Bene Gesserit, dos eventos subsequentes à derrocada da casa Atreides. Além disso, podemos compreender como essa dimensão é extremamente complexa e multifacetada, ao enxergarmos a utilização de uma narrativa múltipla. Por meio dessa estratégia diegética, a transição entre os diferentes pontos de vista e desejos das famílias que protagonizam essa guerra fica mais evidente, e expõe como todas essas ações estão conduzidas, de forma profunda e primordial, pela exploração imperialista opulenta dos recursos naturais de Arrakis, a rigor: a especiaria.
II
Apesar desse novo destaque ao aspecto narrativo com o novo longa, a imagem deste evidencia a mesma preocupação com o plano, que não foi abandonada com o primeiro, mas sim realçada em larga escala, partindo de alguns novos experimentos com o plano. Em cena primeira, por exemplo, Paul Atreides (Timothée Chalamet) e Lady Jessica (Rebecca Ferguson) prosseguem sua jornada com os fremen em direção a Sietch Tabr. Brevemente exposto ao eclipse, Arrakis ganha novo destaque pela sua coloração destacada de um vermelho fortemente saturado, percepção que destoa da técnica utilizada no filme anterior. É no vermelho “eclipsado” que se esboça a tensão entre Paul e seus inimigos; o seu sangue ferve, e somos incorporados ao meio. Posteriormente, somos introduzidos ao intrigante Feyd-Rautha (Austin Butler) em uma batalha comemorativa ao seu aniversário. Nesse momento de igual tensão, as cores preto e branco em Giedi Prime acentuam a natureza Harkonnen, o seu sangue frio, a brutalidade do seu sistema político e a maneira imperialista como enxergam o ecossistema.
Em cena posterior, quando Paul Atreides e Chani (Zendaya) discutem as diferenças entre Caladan e Arrakis, percebemos a real possibilidade de uma relação entre os dois, delicadamente construída durante os primeiros minutos do filme. A trilha que compõe a cena, intitulada A time of quiet between the storms (“Um tempo de quietude entre as tempestades”) eleva-se de forma absurda e dialoga de forma extraordinária com o momento que irá se seguir. Esse interlúdio de Paul e Chani, repleto com o poder do melodrama, nos envolve e divide o espaço com diferentes capturas da breve vivência em união dos dois personagens, e nos prepara, em seu tom constantemente progressivo, para a tempestade que se segue. Ao final do filme, o tema etéreo da trilha retorna e finaliza-o com uma nova profecia: o desenrolar de uma guerra santa e a promessa de um novo ato tão grandiloquente quanto o que se encerra. Tal dimensão se eleva na medida em que é complementada pela produção de som, responsável por construir momentos absurdamente potentes e “barulhentos” – outros um pouco mais contidos – que de alguma maneira eleva e corporificam a glória do evento representado.
III
Descobrimos, por fim, que o filme nunca teve a intenção de retratar unicamente uma guerra ou os efeitos práticos das relações de poder sob o produto do capital, a riqueza e as sequenciais catástrofes às quais se relacionam em uma sociedade universal. Aqui, esbarramos com diferentes fragmentos e versões de uma mesma história sobre amor, sobre vingança, sobre o desejo e, acima de tudo, sobre o poder, todos evidenciados pelo cuidado com o detalhe e realçado pela abordagem visual e sonora.
Ao reforçar a própria dignidade em permanecer ao lado de outras grandes obras do gênero como Star Wars: O Império Contra-Ataca, Duna cumpre o papel de entrar para a história do cinema e reafirma, de forma legítima – ao unir público e crítica em um continuum – o próprio fulgor do espectador. No desfecho de um ato cuja história ainda permanece em andamento, o longa reacende a chama daqueles que se deliciam com o prazer de ocupar uma sala de cinema e, para outros, sentir o próprio êxtase que é fazer cinema.
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