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Foto do escritorFelipe Duarte

"A Semente da Figueira Sagrada" e A Imagem Que Inicia Este Texto

Foto: Reprodução / Mohammad Rasoulof

A imagem que inicia este texto não está em A Semente da Figueira Sagrada (2024). Não obstante, ela é um dos frames que ancorou a recepção crítica do filme, concedendo materialidade a uma narrativa extra-diegética. Essa imagem chegou ao mundo pelas mãos do diretor do longa-metragem, Mohammad Rasoulof, que a postou em seu perfil pessoal no Instagram, no dia 13 de maio deste ano. Junto a ela um texto em farsi, no qual recorda as represálias que sofreu por parte do governo de sua terra natal, o Irã. 


Rasoulof já foi retido mais de uma vez pelo regime dos aiatolás, devido às críticas políticas a partir das quais constrói a narrativa de seus filmes, muitos deles aclamados internacionalmente. Seu último longa de ficção, Não Há Mal Algum (2020), uma antologia debatendo as questões morais sobre o regime teocrático, ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim no ano de seu lançamento. Na época, Rasoulof não pode comparecer para receber o prêmio, sob ameaça de pena de morte. 


Após o anúncio de que A Semente da Figueira Sagrada havia sido selecionado para a competição oficial do Festival de Cannes de 2024, novamente carregando críticas à administração iraniana, o diretor foi sentenciado a cinco de anos de prisão, pagamento de multas e chibatadas. Escapando da punição física, ele evadiu clandestinamente do país, anunciando-se agora residente não do Irã geográfico, mas do Irã cultural, no texto que serve de legenda para a imagem que inicia este texto. Tal imagem é a paisagem de um homem em fuga. 


Inevitavelmente, a narrativa heroica de um artista comprometido com as liberdades e direitos humanos contra a opressão de um governo autoritário é tão politicamente admirável quanto mercadologicamente sedutora. Rasoulof, ao se fazer presente no Palais des Festivals para a estreia do filme, foi aclamado pela audiência do Festival de Cannes, de onde sairia com um prêmio honorário, compreendido não só como um reconhecimento de seu trabalho artístico mas, acima de tudo, como um gesto de condecoração ideológica. Para além da usual (e talvez já defasada) dicotomia entre o estético e o político, o texto fílmico de seu trabalho não está só cercado do real contexto político no Irã, mas se estrutura, visualmente, a partir dele. 

Foto: Divulgação/ Films Boutique

A imagem que inicia este texto não está em A Semente da Figueira Sagrada, mas similares a ela estão outras, também compartilhadas em redes sociais, registradas por cidadãos que buscavam denunciar o abuso de poder pelas forças do regime teocrático. Elas surgem, verticais como as telas dos celulares que as produziram, mostrando episódios de violência policial, protestos e embate civil. Esse arquivo instrumentaliza ainda mais o filme como ferramenta política, e serve de contraponto e contexto às imagens da vida doméstica no centro das outras imagens, produzidas para o filme. 


Nelas, acompanha-se a vida de Iman (Missagh Zareh) e sua esposa Najmeh (Soheila Golestani). Iman recebe uma promoção como servidor público no judiciário iraniano, alçando um novo patamar de influência institucional e estabelecendo a expectativa de um futuro promissor, com status social e um apartamento onde suas filhas Rezvan e Sana (Mahsa Rostami e Setareh Maleki) possam ter quartos separados. As promessas de prosperidade, no entanto, logo se mostram custosas.


Iman é acometido por culpa e incerteza, quando fica claro que sua nova função lhe foi designada com interesses corruptos – para que ele facilite a atribuição da pena capital (tema recorrente nos trabalhos de Rasoulof) em casos ainda inconclusivos. Simultaneamente, eclodem os protestos ao redor do país, que recrudescem não só as atrocidades requeridas de Iman em seu trabalho, mas também os posicionamentos políticos dele e de suas filhas, ambas ainda estudantes. Na diegese, elas observam o arquivo de imagens documentais em seus celulares e progressivamente se tornam mais críticas ao regime teocrático, opondo-se ao pai e desequilibrando o outrora harmônico ambiente familiar. 


A aposta do diretor neste longa-metragem é expor como a falência moral da teocracia corrompe as esferas mais íntimas das vidas que são forçadas a se organizar sob esse regime. Para deixar isto claro, abre o filme com um texto que explica seu título: a semente da figueira, para dar origem à árvore, sufoca e mata toda outra forma de vida ao seu redor, um paralelo direto com o governo dos aiatolás. Consequentemente, quanto mais Iman ascende nesta hierarquia violenta, mais instável se torna sua base familiar. 


Mas o ímpeto de Rasoulof de instrumentalizar A Semente da Figueira Sagrada tem gravidade severa, e conforme o enredo avança e os eventos se acumulam, o peso da pedagogia almejada se faz sentir, impedindo que a obra alcance voo pleno. Embora as quase 3 horas de filme possam se justificar na própria onerosidade dessa duração como um mediador da experiência narrativa, elas se tornam incômodas quando fica claro que o rumo eventual dos acontecimentos desemboca em algo bem mais caricato do que o drama familiar inicial parecia sugerir.


O sumiço da arma de Iman, sua paranoia decorrente e eventual transformação em uma figura que essencialmente mantém sua amada família em cárcere privado talvez fossem mais eficiente se o enredo se ativesse ao tom alegórico do letreiro de abertura, mas tropeçam em um elemento chave d’A Semente: as imagens irmãs daquela que inicia este texto. Os vídeos de protesto estabelecem um horizonte tonal com o qual o conto familiar precisa dialogar e não consegue, especialmente nas longas sequências da perseguição de carro e do perigoso jogo de esconde-esconde nas ruínas. Há um apartamento severo entre a gravidade do arquivo documental e o senso de espetáculo encontrado nessas duas sequências, que constroem um final de enredo que não chega a uma síntese tão potente quanto deseja, perdendo espaço para o cartunesco.


Foto: Divulgação/ Filmes Boutique

Há, para a sorte de Rasoulof, um elemento cênico que parece conseguir conter as contradições necessárias em um filme que almeja tanto uma ideia de contemplação política: a performance de Soheila Golestani. Interpretando Najmeh, ela surge como uma mãe de família criteriosa e esposa cuidadora, defendendo uma perspectiva tradicional sem nunca adotar a postura de submissão cartunesca. Opõe-se às críticas políticas das filhas, mas parece ter um senso de pragmatismo maior do que todos os personagens em tela. Ao fim, vitimada pelo comportamento absurdo do marido, corajosamente busca proteger as meninas do homem que não mais reconhece. 


E, no mesmo ano em que o olhar de Fernanda Montenegro sintetiza o luto insuperável em Ainda Estou Aqui, é no olhar Golestani que Rasoulof encontra a melhor a cena de seu filme: o plano fechado no rosto de Najmeh, que cuida, a contragosto, dos ferimentos de uma colega de faculdade de sua filha mais velha, ferida em um dos protestos revoltosos. A esposa de Iman repudia o envolvimento das jovens nesses atos e deseja afastar a amiga das meninas de sua casa; entretanto, quando a garota surge com o rosto em carne viva, Najmeh coloca a cabeça dela sobre suas pernas, retira as balas de chumbo de suas bochechas e, vendo-a agonizar, derrama uma lágrima. 


Essa lágrima não é o catalisador final que altera a perspectiva que Najmeh tem de seu país ou do mundo, mas exibe uma crença de Rasoulof em algo que o maniqueísmo simplista, presente no terceiro ato do filme, poucas vezes logra êxito em reconhecer: a de uma humanidade comum, não como um apaziguador óbvio, mas como complexificação do mundo e das pessoas. Uma via de acesso àquilo que Rasoulof se opõe constantemente, em uma forma dramática que não só exibe, mas disseca e, portanto, propõe.  


Para além dos arquivos captados por protestantes reais, estão os olhos lacrimosos de Najmeh, e talvez sejam eles os mais próximos da imagem que inicia este texto. Eles contêm, em torpor moral e ímpeto humano, a mesma promessa que o horizonte que paira adiante das montanhas gélidas da fuga de Rasoulof. A promessa de uma terra outra, distante, mas possível, onde as figueiras não conseguem fixar suas raízes. E, chegando lá, mais através de suas fabulações do que por suas exposições, é que cineastas e ativistas como Rasoulof permitam, um dia, quem sabe, germinar um mundo possível, e um mundo melhor. 


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