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Foto do escritorLwidge de Oliveira

A rotina tem seu encanto


A começar pelo título. Tirado da faixa Perfect Day, escrita por Lou Reed e integrante do álbum Transformer (1972), os versos narram um dia na vida de um casal com tamanha parcimônia e melodia, transmitindo uma situação marcada pelo banal e indiscrição sentimental. Vista como preâmbulo à mais nova obra do alemão Wim Wenders, a composição acaba por configurar sua dualidade, variante entre a excessiva melancolia e prazer encontrado na monotonia.


Hirayama (Kōji Yakusho) é um homem simples, trabalha como limpador de banheiros públicos na região metropolitana de Tóquio, conserva uma relação aproximada com a jardinagem e tem uma coleção variada de cassetes e livros. Nada de extraordinário acontece, é uma vida dominada por movimentos repetidos e rotinas pré-estabelecidas. Com essa premissa, seria fácil presumir um filme simples, em que observamos o tempo passar como privilegiados espectadores de uma vida invisibilizada por questões sociais. Contudo, são nas mais variadas e repetidas ações de Hirayama que Wenders nos impulsiona a observar, uma faculdade até o momento perdida por toda uma conjuntura disposta a suprimir o olhar, seja através das inúmeras imagens a que estamos submetidos ou a rotina compartimentada e regulada pelo tempo. Não é à toa que uma das primeiras informações repassadas é a de que o personagem não carrega consigo, por mais que o tenha em casa, um relógio de pulso durante o trabalho. Em poucos segundos, o cineasta abre margem para o aviso: Hirayama vive dentro do próprio tempo, assim como este filme.


Em dado momento, Hirayama contraria a sobrinha sobre a oportunidade de ir até um ponto turístico. A menina, por outro lado, indaga por que não no atual momento, o que seu tio bondosamente responde: "Da próxima vez é da próxima vez. Agora é agora". A cena resulta em um dos poucos momentos verdadeiramente silenciosos entre personagens, visto que importa mais a transmissão da reflexão do que os próprios acontecimentos. A sobrinha aceita a proposta. Porém, a declaração parece vir de um outro lugar. Quaisquer que sejam as insuficiências comunicacionais do cinema, evidenciar os sentimentos não é uma delas. Hoje, em contrapartida, parece inviável o emprego da ternura e contemplação. Afinal, o cinema é uma arte que viabiliza a contemplação, mas encontra-se desvirtuada por uma cultura pautada pelo entretenimento. Parece que os ideais dispostos a entrelaçar cultura e maturidade foram substituídos por uma perspectiva jovial permanente, em que o tempo parece não pertencer à própria experiência humana. Nesse sentido, esse momento parece mais uma interlocução feita pelo próprio Wenders com esse séquito jovial, impaciente e cáustico, ratificando um debate particular em filmes anteriores como Room 666 (1982), marcado pela preocupação excessiva sobre o futuro do cinema em um momento controlado pela televisão.



O debate acerca dos dualismos inerentes à vida moderna sempre interessou a Wenders, o que não seria invisibilizado de forma alguma em outro idioma e região. Não é por acaso que há uma presença excessiva dos pequenos aparelhos retangulares, portadores de informações e instrumentos de produção fotográficas instantâneas — situação fortemente contraposta à dedicação do personagem principal em capturar de forma analógica pequenas mudanças pelos lugares que passa. Em retrospecto, a conjuntura representa, por mais que exista a barreira linguística e cultural, a união sobre fundamentações verdadeiramente humanas. Assim como o realizador, Hirayama encontra-se nesse ramo há tanto tempo, desferindo os mesmos movimentos e interações com o mundo, sendo um atípico observador da vida, tanto em suas transmutações físicas quanto emocionais. A atenção devotada ao ambiente é atravessada pelo silêncio, no final das contas acompanhamos um personagem que fala pouquíssimo, mesmo quando acompanhado. Identicamente, Wenders possui uma filmografia marcada pelo olhar devotado ao outro, seja em documentários como Buena Vista Social Club (1999) ou ficções como Land of Plenty (2004). Ademais, ambas trajetórias são marcadas pela itinerância, um viaja pela cidade limpando cubículos e o outro vira o mundo em busca de histórias. É impossível sair ileso dessas relações espaço-temporais entrelaçadas por este aparelho tão poderoso a serviço da humanidade, vetor do que há de mais pessoal e irreversível. Zeloso administrador, Wenders reforça a potencialidade do cinema em esforço raro, algo que só poderia ser atravessado pela maturidade e por uma imensa bondade.


Não escondo minha admiração por este realizador, que mesmo com tantos anos passados ainda pode nos convidar para mais uma empreitada belamente orquestrada. São esses momentos vagamente ignorados pela repetição que a integridade humana floresce e cede à eventual esperança. Infelizmente, tive que sair da sala quando tudo acabou e os créditos rolaram, mas levantei com um peso inexplicável e leveza desmedida. Mais uma vez o cinema havia preenchido uma lacuna. E, no fim, trata-se disso: a arte como aproximação do que há de mais distante e ignorado pela experiência mundana, um convite para observação atenta da vida.

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