Para que esse texto se desenvolva, é preciso caminhar diretamente para os minutos finais de A Primeira Profecia (The First Omen, 2024), de Arkasha Stevenson. No momento do parto para o nascimento de Damien, filho do diabo que é o ponto de partida para o clássico A Profecia (The Omen, 1976), de Richard Donner, a cineasta filma o rosto da mãe em completo desespero ao dar-se conta do que está acontecendo. Sem qualquer corte, as lentes passeiam do rosto dela para a barriga materna e para os instrumentos de corte que serão utilizados para tirar o bebê. É um movimento simples, indicativo ao espectador do que irá acontecer, mas que guarda consigo um subtexto que perpassa todo o projeto: o corpo feminino dentro do horror. Desde os minutos iniciais é o rosto de mulheres que estão no centro do quadro, com lágrimas expostas em close-ups e gritos que solidificam o desespero que será o fio principal da trama que envolve a noviça Margareth Daino (Nell Tiger Free) e sua chegada a uma escola de freiras em Roma.
É claro que o corpo e a face feminina no horror fazem parte de um processo imagético que pode remontar ao século XVIII através das ficções góticas, por exemplo, fazendo com que eles sejam vistos tanto como os sensibilizadores, ou seja, que produzem a emoção, quanto os sensibilizados, isto é, que sofrem com sentimento. Não é necessário voltar muito no tempo para observar tais características na trajetória cinematográfica do gênero. Em Psicose (Psycho, 1960), um dos clássicos do gênero, o momento em que Marion Crane (Janet Leigh) é atacada no banho, é no extremo close de sua boca que seu grito se materializa junto aos acordes de Bernard Herrmann. Em O Bebê de Rosemary (Rosemary's Baby, 1968), quando a protagonista descobre que seu filho foi gerado pelo demônio, é também através de uma câmera próxima ao seu rosto que observamos o choque que lhe toma. Ambos os exemplos, essas mulheres passam pela violência de terem seu corpo atravessado por objetos cortantes, assim como aqueles mostrados em A Primeira Profecia.
Arkasha Stevenson, por sua vez, sabe que seu filme surge com uma dupla responsabilidade: não apenas de produzir um filme que tem de lidar com o peso de fazer parte de uma história clássica do gênero, mas de também pertencer à linguagem contemporânea tanto estética quanto politicamente. Não se trata de negar o que veio antes, mas de utilizá-lo para construir algo em cima, em uma proposta que não se submeta apenas a uma referência por ego, mas que a partir dela avança dentro da narrativa. Logo, esses rostos que marcam o filme estão a serviço de uma trama que é mais sobre opressão e a violação que sobre Damien e sua função político-religiosa no universo diegético; contudo, um não evita o outro, muito pelo contrário, eles se complementam. Basta observarmos um dos momentos mais marcantes do projeto: quando Margareth, ao lado de Luz (María Caballero) sai para as boates italianas. Lá, a protagonista, vestida com roupas decotadas, tem um momento de uma suposta liberdade ao lado de um homem.
Neste momento, e em diversos outros, Margaretta, como a protagonista é chamada no convento, é vista como um corpo sensibilizado, isto é, ela só existe para satisfazer uma instituição religiosa que vê no nascimento do anticristo a possibilidade de manutenção de poder. Todos os seus passos, desde sua chegada idílica a Roma, com os tons dourados recaindo perfeitamente pela cidade, até o instante em que ela se dá conta do que realmente está acontecendo, com a mesma cidade vista de forma desconcertante, como se a câmera buscasse uma saída dali, estavam sendo monitorados para que não houvesse qualquer escapatória. Para ela não haveria saída, assim como para Marion de Psicose ou para Rosemary do filme de Polanski, inspiração central de Stevenson em alguns dos momentos mais perturbadores de sua Profecia. O momento da concepção, por exemplo, é uma alusão direta ao longa-metragem protagonizado por Mia Farrow e John Cassavetes. Durante o que parece ser um delírio, um grupo de pessoas aguarda o corpo da mulher chegar ao lugar onde será gerado o filho do demônio.
Tanto o rosto de Rosemary quanto de Margaretta são vendados com um tecido preto e uma figura importante da Igreja surge em uma iluminação aterradora. Seus rostos são vistos de perto enquanto expressam deslocamento, dúvida, dor e desespero. A montagem oferece um vislumbre daquele que irá conceber. Se no clássico de 1968 são os olhos, o que diz muito sobre a abordagem do corpo como prazer visual, no filme de Stevenson é a mão que surge em diferentes momentos: a mão que viola, que violenta e oprime. São elas que pegam os objetos cortantes durante o parto e cortam a barriga da mulher que concebeu aquela criança a partir de um estupro. Ao ouvir o choro da criança, Margaretta parece reagir imediatamente àquele som, assim como Rosemary reage quando seu filho começa a chorar. Mas se àquela época ela caminha até o filho e o embala, aqui é quando o corpo sensibilizado se torna um corpo sensibilizador. Margareth, para mencionar Laura Mulvey, deixa seu lugar de portadora de significado para o de produtora de significado.
Ao utilizar-se da emoção como base para sua manipulação, ela toma um dos objetos cortantes sobre a mesa e vira-se contra todos aqueles que a violentaram e que observaram a violência e nada fizeram. Sua sobrevivência e reação permitem que A Primeira Profecia encontre novamente suas duas responsabilidades: a de haver uma continuação, o que já era de se esperar dentro de um panorama cinematográfico que depende de remakes e/ou continuações; e também de sublinhar todas essas questões femininas discutidas ao longo do filme. Cada decisão não apenas honra as raízes do gênero, como também abre espaço para reflexões sobre o papel da mulher dentro do horror. É partir do cânone para adicionar algo mais. O longa de estreia de Arkasha Stevenson é a jornada de “una farfalla che deve volare”, como brincam as crianças do filme, ou seja, de uma borboleta que deseja voar. Em um momento em que o cinema contemporâneo está contando histórias de mulheres tentando escapar do jugo patriarcal, A Primeira Profecia se destaca como uma adição bem executada a essa narrativa.
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