Em meio a um espaço cinza, Wanda (Barbara Loden) surge entre as minas de carvão. Seu corpo é pequeno em comparação à paisagem que a circunda. Caminha de forma descuidada, carregando convicções para chegar a algum lugar; quem sabe à cidade, o espaço que pretende engolir e cuspir na mesma intensidade suas vontades e crenças que tornam possíveis a vida. O sujeito evocado na sequência acaba refletindo um fenômeno que recai sobre a socialização moderna, intercalada por anseios e inseguranças. O Flâneur, termo cunhado por Walter Benjamin a partir da literatura de Baudelaire, surge como sujeito que percorre as ruas das cidades sem objetivo aparente, entregue à contemplação do espaço circundante. Atravessado por questões de gênero e classe, os percursos de contemplação destinados a homens refletem privilégios e regalias, enquanto, para as mulheres, resta o trajeto ao trabalho ou a rua como espaço a ser evitado e temido. No entanto, a partir de meados do século XX, o urbano toma outros rumos e outras visões o cercam – a imagem da fleâneuse [1] surge, e a vida externa se torna uma possibilidade para o corpo feminino. Fortemente ligado a essa perspectiva, Wanda (1970) é um reflexo do presente e de futuros possíveis, presos em sua época, a partir do sujeito que anda e contempla.
Fruto do início da década de 70, o longa é o primeiro trabalho direcional da atriz Barbara Loden, conhecida por interpretar papéis secundários para o cineasta Elia Kazan, seu marido. Assim como outras atrizes, Loden decidiu se aventurar na direção e, com baixíssimo orçamento, produziu, roteirizou e dirigiu a película que acabou virando um clássico cult, redescoberto pela historiografia do cinema como importante documento de autoria feminina no movimento da Nova Hollywood. No entanto, desde o lançamento da presente obra, só conseguiu produzir outros dois curtas-metragem, The Boy Who Liked Deer (1975) e The Frontier Experience (1975), encerrando sua carreira na direção. No outono de 1980, poucos meses depois da prematura morte de Loden, Marguerite Duras faz uma entrevista a mando da Cahiers du Cinéma com Kazan; mas, ao invés de perguntar sobre a carreira do consagrado cineasta no cinema norte-americano, Duras pergunta sobre Loden e a importância de Wanda depois de dez anos de seu lançamento. Tomando como base a provocação de Duras, precisamos falar sobre Wanda depois de mais de 50 anos da sua tímida estreia.
Aparentemente, Wanda é mãe, suburbana, esposa e trabalha em bicos esporádicos para complementar a renda familiar, até o momento em que é levada a júri pelo marido, acusada por negligência ao papel social da maternidade e enquanto esposa. Inadequada e, logo, punida, volta a caminhar pelas ruas com uma expressão perdida e triste; passeia por locais que a negam empregos, até que estagna em um bar e se depara com um homem que realiza pequenos furtos, Sr. Dennis (Michael Higgins), com quem estabelece uma relação de parceria subordinada. A partir deste momento, Dennis e Wanda se aproveitam como forma de apoio mútuo neste momento em que ambos parecem perdidos, sujeitos que não se encaixam no American Way of Life, resignados à margem – visão intensificada quando sabemos que a inspiração para a personagem principal é proveniente de artigos de jornais da época que narram um assalto a banco que fracassou, levando o homem à morte e sua companheira a uma condenação de 20 anos de prisão.
Em um olhar superficial para os fatos que se desenrolam a partir da fuga de ambos daquele espaço que os limita, poderia parecer uma narrativa de road movie, no qual vemos personagens se deslocando a caminho de algum lugar, mas o que percebemos é uma espécie de anti road movie pelas expressões perdidas de ambos. Mesmo em deslocamento, não caminham a lugar algum, estão estagnados porque não pertencem àquele espaço, que os rejeita de maneira enfática. Embora submetida ao olhar masculino de Dennis, seja por suas agressões verbais ou físicas, é por meio do olhar de Wanda que a história é gerada e desenvolvida, quebrando com uma tradição do cinema clássico, no qual as narrativas são fruto da subjetividade masculina e impulsionadas pelo fálico, visão discutida e problematizada desde a década de 70 pela filósofa Laura Mulvey [2]. Loden constrói uma narrativa puramente feminina, usando de seu lugar social como célula motriz para discutir opressões femininas e o fracasso dos Estados Unidos como modelo social.
O granulado da película, as cores frias e uma trilha sonora praticamente inexistente, formada apenas por sons diegéticos da vida urbana, empregam características extremamente realistas para o espaço cinza. Com a câmera parada na maioria dos planos gerais, é possível identificar a ligeira mudança territorial, movimento contraposto em cenas que os personagens passam por mudanças internas ou tomam decisões que vão influenciar o resto de suas vidas, em uma espécie de inquietude e simpatia pela marginalidade, retratada de maneira fidedigna em filmes como Bonnie and Clyde (1967, dir. Arthur Penn) e Pierrot le Fou (1965, dir. Jean-Luc Godard). Em Wanda, não vemos romantismos, final feliz e nem uma heroína digna de um filme feminista, tampouco um padrão de mulher a ser respeitado pela sociedade tradicional. Há um certo enigma do que pode ser Wanda, uma personagem que esteticamente representa uma dona de casa, com seus bobes de cabelo e vestidos comportados; a mulher que se sente pequena e inadequada ao padrão ao encarar manequins nas vitrines de lojas é, ao mesmo tempo, a mulher que se vê contenta em comprar um vestido branco e uma coroa de flores para se sentir bonita para os outros.
Wanda se personifica como a fleâneuse de seu tempo, tomando o seu espaço na rua, ao invés de se enclausurar em casa e cumprir papéis pré-estabelecidos. Seu caminhar parece eterno, tal como as discussões que a película trava em seu cerne. Quando Duras afirma para Kazan que Wanda é um milagre, é uma forma de demarcar por que ele deve ser assistido, estudado e relembrado. É preciso trazer Wanda para a rota mais uma vez, discutir o encanto ao não saber o limite entre a protagonista homônima e Barbara Loden, como o caminho entre as duas se entrecruza, anônimas em sua época e felizmente relembradas por futuros possíveis e melhores para Wandas.
Notas
[1] Para maior aprofundamento do conceito, recomendo a leitura de ELKIN, Lauren. Flâneuse: Women Walk the City in Paris, New York, Tokyo, Venice, and London. Farrar, Straus and Giroux, 2017.
[2] MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Screen, v. 16, n. 3, p. 6-27, Autumn 1975
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