Um plano sequência que apresentaria Eva. Nele, a câmera a segue entre os espaços de uma suíte, saindo do banheiro, entrando no closet, dando os retoques finais da maquiagem nos espelhos que encontra pelo caminho. O cabelo loiro e comprido, arrumado de maneira quase juvenil, cai em cima de um longo e esvoaçante vestido lilás, acentuando a barriga que entrega uma gestação já em estado avançado. Ela se move com graciosidade enquanto apanha alguns pacotes para sair do quarto e descer as escadas, rumo ao som de uma festa repleta de crianças. Seria esse plano, calmo e doméstico, que a apresentaria, se não pela primeira cena do filme: sem a barriga de gestante, ela usa um vestido vermelho decotado e enterra o corpo de uma criança sem rosto. Após ignorar as ligações de um homem desesperado, coloca uma outra criança assustada no banco do passageiro de um carro. Acelera o automóvel, de olhos fechados, e colide de frente com um caminhão.
Uma Família Feliz (2024) constrói sua narrativa para fazer entender como essa mulher, com índoles tão diferentes nas duas cenas iniciais, vai de um extremo ao outro. Essa narrativa se fundamenta em um clichê doméstico, no qual Eva (Grazi Massafera) é uma bela e jovem esposa do galante Vicente (Reynaldo Gianecchini), advogado à beira de uma promoção definitiva no escritório em que trabalha. Em uma casa consideravelmente luxuosa, eles aguardam o nascimento do primeiro filho do casal, enquanto criam as gêmeas de 10 anos, Sara e Ângela (Luiza Antunes e Juliana Bim), fruto do primeiro casamento de Vicente, encerrado com trágico acidente que levou a mãe das meninas ao óbito.
Enquanto desempenha suas funções de esposa modelo, Eva toca uma loja online onde comercializa bonecos de bebê feitos à mão, para famílias que perderam seus infantes antes que tivessem a chance de crescer. Seu trabalho como artesã se junta às suas funções domésticas e sua performance social perante as outras mães do condomínio, compondo uma narrativa da mulher contemporânea que se digladia para se adequar a todos os papéis impostos à figura feminina ideal. Após o nascimento do seu filho, a tensão acumulada por Eva parece chegar ao limite, com as dificuldades de concretizar a amamentação e o desprezo aparente do marido pelo estresse imposto a ela durante esse processo. É em meio a esse cenário cada vez mais limítrofe que as crianças da casa surgem com ferimentos e hematomas suspeitos, indicando algum tipo de abuso ou maltrato, sem nenhum responsável direto aparente. Em uma conversa com a diretora da escola das gêmeas, as meninas apontam Eva como culpada.
A partir desse ponto, o roteiro de Raphael Montes faz um ótimo trabalho envolvendo o espectador em possibilidades que expliquem a perturbadora violência contra as crianças. Eva nega veementemente a responsabilidade pelos ferimentos, mas sua natureza progressivamente mais instável e o episódio violento na cena de abertura parecem sugerir que a perspectiva da protagonista não pode ser confiada. Teria ela alguma forma de psicopatia? Seria o pai um abusador manipulativo? Estaria a escola encobrindo algo? A origem da violência é humana ou sobrenatural? A mãe das meninas se revolta do além túmulo? Todas essas vertentes são suscitadas de maneira orgânica durante o decorrer do filme, avançando os riscos e acumulando tensão, da forma que um suspense competente deve fazer.
A faceta do suspense é, de fato, o apogeu do longa de José Eduardo Belmonte. Quanto mais desavergonhadamente flerta com o gênero, mais valorosas se tornam as imagens. As pilhas de bonecos, a cabeça artesanal no forno, os olhos negros do bebê mirando a câmera infravermelha acima do berço; esses quadros surgem provocando desconforto sem exagerar em sua plasticidade, inquietando com alguma discrição como um recurso estético que impulsiona a dúvida sobre as naturezas incertas do caso e da mulher, ao mesmo tempo que não indicam pistas concretas, mantendo o suspense.
É um trabalho envolvente, mas infelizmente inconstante, pois, quando Uma Família se afasta das referências de gênero e retorna ao terreno do drama doméstico, há o sentimento perene de perder alguma coisa. É um jogo de vai e volta claramente intencional, mas de natureza invariavelmente delicada, que nesse caso quebra demasiado com a progressão coesa de uma tensão tão fundamental para que o filme funcione da melhor forma possível. A montagem, responsável pelo intrigante jogo de cenas que abre o longa, por vezes parece querer manipular em excesso a percepção do espectador nas transições entre as duas esferas do filme (exemplo claro seria a cena na qual Eva confronta as meninas na sala da casa na noite após a acusação).
São escolhas de corte e ritmo que parecem elas mesmas desconfiadas do horror como um estilo que dá conta das nuances aqui almejadas quando a obra se torna um denso drama familiar. O horror, no entanto, é um gênero predominantemente doméstico, e surge em sua maior potência sempre em salas de estar e portas de quartos, testemunhado sem muita interferência por uma plateia a quem é cedido o tempo para se afetar com a atmosfera de uma cena. A subexploração (ou desconfiança) desse potencial cria um filme que está em conflito consigo, não de maneira a causar a derrocada do projeto como um todo, mas que o afastam do ideal possibilitado pelo roteiro.
Se em meio a estas tensões formais há uma bandeira branca, ela se manifesta no esmero da performance no centro da tensão diegética. Grazi Massafera há muito superou o superficial status de “pessoa famosa que aparece em filmes” e se consolidou como atriz potente, cujo carisma acompanha uma veia dramática intensa e bem explorada. Desde o início, a câmera busca seu rosto em close, esperando que a protagonista exprima as distintas formas de angústia que atravessa pelas linhas de expressão em sua face. Massafera as articula com boa dose de nuance, tanto no suspense quanto no drama, e se disponibiliza para guiar a audiência nessa dança entre os dois pólos conflitantes.
É na organicidade do conflito interno de sua protagonista, enquanto ela trilha o caminho do vestido lilás ao vestido vermelho, que Uma Família Feliz encontra a coesão tonal que lhe escapa em outras instâncias. Não que um pólo estilístico eixo seja esteticamente pior que o outro, mas permanece o sentimento de que não só a família ao centro do enredo luta entre si, mas que o longa se compõe em embate com a própria natureza de seus recursos estéticos. São golpes não fatais, que machucam o filme, mas não o derrotam.
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