A dançante e maligna "Trilha Sonora para um Golpe de Estado"
- Leo Wanderley
- 30 de jan.
- 3 min de leitura

Um solo de bateria do lendário Max Roach deixa claro, já nos primeiros minutos, o tom de Trilha Sonora para um Golpe de Estado, indicado ao Oscar de Melhor Documentário. Freneticamente e, não coincidentemente, em ritmo sincopado, o longa aborda parte da história de libertação da República do Congo e sua peculiar conexão com alguns dos maiores ícones do jazz norte-americano, isso tudo em meio à Guerra Fria. As complexas tensões sociopolíticas se misturam com muita música em uma narrativa tão bem humorada quanto caótica, numa crescente impossível de passar despercebida.
A trama se apresenta a partir do marcante protesto protagonizado pelos músicos Abbey Lincoln e Max Roach no Conselho de Segurança da ONU, em 1961, motivados pelo assassinato de Patrice Lumumba, então primeiro ministro do Congo. Partimos do fim e, daí, acompanhamos uma narrativa não-linear, que utiliza da música como principal fio-condutor para a verdadeira enxurrada de clipes musicais, trechos de entrevistas e imagens enfáticas dos mais variados temas, como de uma fábrica de iPhones e bombas caindo.
Louis Armstrong, Nina Simone, Dizzy Gillespie (e sua afrontosa candidatura a presidente dos EUA) e Malcom X são alguns dos personagens que nos guiam durante esta aventura, que trata da instrumentalização da cultura como ferramenta política e os interesses imperialistas na África Central. Sob uma perspectiva decolonial, o diretor belga Johan Grimonprez nos desafia para esta jornada, primorosa quando falamos de ritmo e montagem, ao conseguir dar sentido à confusão imagética sem fazer uso de obviedades do gênero documentário.

A história de luta é tocada em escalas políticas e harmônicas, em um caos perfeito, em alusão ao jazz e sua estética sonora, constantemente descrita como “desafiante”. Trilha Sonora para um Golpe de Estado também reivindica a história de luta do Bebop e seus irmãos diretos, continuamente apagada dos anais da música. Mesmo assim, não há, necessariamente, esforço para verbalizar a participação de todos os personagens, ao tocar, por exemplo, John Coltrane. Sem contexto ou ligação alguma à trama que está sendo construída, mas em sintonia sonora e histórica, a colcha de retalhos vai se formando em ritmo frenético e intermitente.
A Love Supreme, álbum de Coltrane que é um verdadeiro grito de resistência, só seria lançado três anos após os acontecimentos na ONU. We Insist! Freedom Now Suite, disco lançado em 1959 pelos dois protagonistas do episódio histórico, sequer é citado, apesar de tocado contundentemente do começo ao final da obra. O ponto é o jazz sessentista como um todo, a potência musical não pede descrições ou aulas de história sobre seus feitores. Estamos conhecendo um movimento rico e horizontal, passando por sutilezas tão ágeis que são difíceis de acompanhar sob uma visão individual.
O embelezamento natural nesse passeio jazzístico não ofusca o rigor estético das imagens, muitas até então desconhecidas. O trecho que trata da improvável love story entre o primeiro ministro da União Soviética, Nikita Khrushchov, e o então presidente estadunidense Eisenhower é tecida de tal forma que nos convence que, na verdade, os lados opostos da principal tensão política estavam em uníssono quando o assunto era a exploração do Congo, mesmo inimigos nos interesses específicos na região. A falta da apresentação de provas em ordem direta, que pode incomodar alguns, é desnecessária para o argumento desconstruído mas indubitavelmente verídico.
Ao contrário da cortina de fumaça musical que é o cerne do documentário, as respostas não são desveladas totalmente. O filme se esvai como começou, cheio de notas e sabores ainda não mastigados, como os melhores dos improvisos. Aqui, o instrumento é a imagem, e o que parece impossível de ser saboreado por completo causa alvoroço, mas passa bem claramente a potência deste episódio histórico e de todos os agentes envolvidos.
Commentaires